Entrevista:O Estado inteligente

domingo, março 11, 2007

Na boca dos leões Gaudêncio Torquato


Ao começar a ler este parágrafo, o leitor não imagina que, antes mesmo de chegar ao final, duas pessoas estarão tombando ou sendo vítimas de assaltos no território brasileiro. E mais, entre a leitura do jornal de hoje e o de amanhã, cerca de 110 pessoas morrerão e 55 serão feridas por arma de fogo. A estatística é gritante: segundo a OMS, o País é campeão mundial em número de homicídios, com a soma de 45 mil ao ano. Só na capital paulista morrem 5 mil. Em 20 anos, as mortes por causas violentas no Rio de Janeiro e em São Paulo aumentaram em 230%. A violência ceifou a vida de mais de 2 milhões de pessoas. E o que fazem os governos federal e estaduais? Dão tiros a esmo. Atacam bandidos com balas de ocasião e migalhas de recursos. Ou, quando premidos pelo clamor público, esticam léguas de discursos retumbantes, como se viu por ocasião do assassinato do garoto João Hélio, que comoveu o País. Naquele momento, parecia que o Brasil despertara da letargia. E que o PAC da Segurança Pública, afinal, chegaria para limpar as ruas de bandidos. O tema da maioridade penal veio à tona. Governadores do Sudeste se reuniram e prometeram sinergia de ações.

Mas as esperanças começam a se desvanecer na névoa das promessas deixadas de lado. O presidente da República prometera debater o tema da segurança pública com os governadores. Nada feito. O tão ansiado PAC veio, sim, mas para a educação, o que é elogiável quando se sabe que a porta da mudança se abre com a chave educacional. Os R$ 8 bilhões anunciados para melhorar o ensino, com prioridade na educação básica, são bem-vindos, mas há uma urgência que não pode aguardar: o combate sem tréguas à criminalidade. Basta os governantes fazerem a conta: a violência custa R$ 300 milhões por dia, conforme pesquisas feitas pelo coronel José Vicente, ex-secretário nacional de Segurança Pública. Por ano, a soma ultrapassa os R$ 11 bilhões. A União despende por ano com segurança menos da metade dessa quantia. Desatenção, insensibilidade. E a tragédia se intensifica.

Abatida por uma bala perdida, em São Paulo, Priscila, de 13 anos, ficou paraplégica. Abatida por uma bala perdida, no Rio, Alana, de 13 anos, morreu. O lamento de uma mãe, cujo marido está desempregado, e o grito desesperado de outra se encerram, ali mesmo, na telinha colorida da TV, por sabermos que a dor materna, por mais intensa, será insuficiente para tirar o sono de governadores e do presidente. Dois sonhos, um desfeito, outro quase, num espaço de poucos dias. Duas pequenas amostras da barbárie que se abate sobre o povo brasileiro. Qual foi o gesto das autoridades para acabar com as balas perdidas? Por que a violência, o problema mais agudo do País, não recebe tratamento de choque? Porque a violência, de tão próxima e repetitiva, a ponto de deixar ver os próximos episódios, se tornou banal. Matar, morrer, ser vítima de seqüestro, ganhar uma bala perdida do tiroteio entre policiais e bandidos são coisas tão corriqueiras que nos dá a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, atravessará o nosso trajeto.

A certeza aumenta quando desviamos o olhar para os dados da fragilidade social. Se ocorrem 2 mil roubos por dia na Grande São Paulo, é razoável a possibilidade de nos tornarmos uma presa. Somos um país 88 vezes mais violento que a França. E com uma bandidagem que se expande ao custo da impunidade. Os “de maior” podem livrar-se com um sexto da pena, transformando, por exemplo, 30 anos de prisão em 5; e os “de menor”, abaixo de 18 anos, são limitados a passar 3 anos no internato. É evidente que a perna legislativa carece de tratamento para não agravar a saúde do corpo social.

Dos 350 mil presos do País, cerca de 80 mil estão detidos em delegacias, quando deveriam estar em presídios. Há um déficit de 100 mil vagas, enquanto 200 mil pessoas têm mandado de prisão, mas perambulam pelas ruas. O diagnóstico é conhecido. O Brasil precisa expandir as prisões, enquanto luta para eliminar os bolsões de miséria e atacar a desigualdade social. Faltam recursos? Nem tanto. Ocorre que o peso das políticas públicas perde para o volume de recursos da área econômica. Basta anotar: no ano passado, gastaram-se R$ 151,1 bilhões em juros e encargos e outros R$ 120 bilhões foram para amortizações da dívida. Um programa acelerado de expansão e aperfeiçoamento do sistema de segurança pública - entre R$ 10 bilhões e R$ 15 bilhões - seria bem razoável. Ou, então, que se procurem recursos e sistemas contemporâneos. Nos EUA, na França, na Inglaterra e na Austrália, certos estabelecimentos penitenciários e serviços de vigilância são privatizados. Cerca de 125 mil presos - dos 2,2 milhões existentes - cumprem pena em presídios privados nos EUA, na esteira de um mercado de US$ 37 bilhões.

Antes, porém, que as centrais sindicais e grupos radicais “politizem” a discussão, há abordagens que merecem avaliação, entre elas um pacto entre União, Estados e municípios em torno de um programa integrado de combate ao banditismo. A idéia de uma ação coordenada abriga investimentos na inteligência criminal, pela adoção de instrumentos de pesquisa e processamento de informações sobre criminosos. O desenvolvimento de um poderoso banco de dados criminais e sociais, com identificação de perfis e padrões de comportamentos nos espaços geográficos, seria eixo vital de uma política focada na prevenção. É evidente que os aparatos policiais hão de ser bem equipados e motivados, significando salários dignos.

Por último, resta ao sistema político ouvir o clamor popular: ninguém agüenta mais. Urge banir das ruas as balas perdidas. Sob pena de continuarmos a sofrer com a síndrome da gazela, extraída da crônica: “Cada manhã, na África, uma gazela abre os olhos; sabe que terá de correr mais do que o leão para evitar a morte. Cada manhã, na África, um leão abre os olhos; sabe que terá de correr mais do que a gazela para não morrer de fome.” Os brasileiros se sentem como gazelas na boca dos leões. Incluindo os grandes felinos que abocanham os impostos.

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