Educação Artística era o nome de uma das “disciplinas” da escola, uma aula que ocupava em nossa percepção um lugar parecido com o da tal OSPB (Organização Social e Política Brasileira), ou seja, quase um detalhe ou excentricidade. Lembro que aprendemos a pintar dentro de círculos e que um dia a professora nos pediu para bolar uma cidade ideal, o que todos tratamos de fazer com avenidas retas e jardins clássicos. Me pergunto se não seria bacana que houvesse uma educação artística de verdade, para que as pessoas entendessem melhor o papel das artes e não ficassem tão passivas diante de livros, filmes, peças e composições; que os interpretassem com noções da história e técnica de cada linguagem, não apenas pela afinidade com o tema ou sentimento. O ganho de prazer que se vê no semblante de uma pessoa que é provocada a pensar sobre como é a obra, e não apenas sobre o que ela é, não deixa dúvidas.
A escola seria um lugar bem menos chato se se abrisse para debates culturais, se os professores dividissem com os alunos o gosto de interpretar um poema, de perceber concretamente os conceitos como, digamos, polifonia ou realismo, de reparar em recursos ou sugestões que normalmente nem são captados. Ou se a garotada pudesse ver ilustradas, por exemplo, as relações entre ciência, arte e pensamento de uma época, o que aproximaria professores de áreas diferentes. Seria importante partir de observações diretas, como em laboratório; mostrar as diversas maneiras pelas quais a pintura combina linha, cor e sensação de volume ou movimento, ou a música equaciona melodia, harmonia e ritmo a tal ponto que se modificam entre si. O que falta ao ensino brasileiro, e não só a ele, é mostrar e demonstrar as coisas, em vez de obrigar o aluno a decorar nomes e classificações sem assimilar o que significam.
Meu medo é que, ao institucionalizar um curso assim, o que era para ser inquietante e estimulante passe também a ficar burocrático. Já existe uma vasta, deprimente carência de educação científica no Brasil, a exigir prioridade máxima. Mas já passa da hora de combater essa cultura brasileira da “humildade”, que não é a humildade de aprender, mas a de dizer amém a tudo que se ouve. Talvez já fosse suficiente encontrar um professor que, de repente, entre uma respiração e outra, como meu professor de literatura no colegial, deixasse cair ao chão, como um giz, um verso de Fernando Pessoa - algo para ficar na cabeça dos alunos para depois do expediente, digo, da última aula. E que, com isso, mostrasse a eles que o mundo não começou quando nasceram, e que nem tudo que se anuncia como novo é, de fato, novo - para que senso crítico e sensibilidade não sejam vistos como oposições, mas pólos sem os quais não existe essa tão falada e tão pouco realizada educação.
A ARTE DE VER
Foram os textos e documentários dos críticos que me deram o que os professores não davam, o instrumental necessário para ver além do visível. Li nestes dias dois bons exemplos de grandes críticos: Modernismos, de T.J. Clark (Cosac Naify, org. Sônia Salzstein), e The Power of Art, de Simon Schama (Harper Collins, ainda sem tradução no Brasil). Nesses autores ingleses há a preocupação de mostrar que arte não é consolo nem conforto, embora também sirva para ocupar nossa mente com imaginações em vez de picuinhas; e que isso implica uma relação rica, não-mecanicista, com a história, com a circunstância em que foi produzida. Em outras palavras, arte é forma sensível de conhecimento.
Clark, de quem destaco um livro de 1999 não publicado no Brasil, Farewell to an Idea (adeus a uma idéia, a da vanguarda), às vezes exagera na sociologia, como quando tenta defender o expressionismo abstrato como “a forma da aspiração pequeno-burguesa à aristocracia naquele momento decisivo em que a burguesia não tem mais essa aspiração” (hem?). E não concordo que as pinceladas de Cézanne sejam “dominadas por uma lógica do artifício”, porque, principalmente em suas naturezas-mortas, esse artifício estava a serviço de uma percepção ainda mais sensível do objeto real; suas maçãs, enfim, são ao mesmo tempo figuras geométricas e nos dão vontade de apalpar. Mas Clark nos põe para pensar e faz observações brilhantes como a superposição do ambiente calculado e de uma “trama de estranhezas” em Vermeer. E é boa a crítica à redenção de Walter Benjamin à redução marxista dos problemas da arte à suposta decadência da “sociedade burguesa”.
Um dos artistas analisados por Clark é também por Schama: Jacques-Louis David, o pintor de Marat, quadro símbolo da Revolução Francesa. Clark acha que a arte moderna começa aí, ao reagir às contingências da política republicana. Mas Schama nota que ainda há na pintura uma idealização - por influência de Poussin - , que romanceia o terror jacobino ao representá-lo como martírio em benefício do “nouveau régime”. Schama, historiador de O Desconforto da Riqueza, Cidadãos e Paisagem e Memória (Companhia das Letras), trata de outros sete artistas no livro novo: Caravaggio, Bernini (um belo ensaio que o mostra para além do rótulo do classicismo), Rembrandt (a quem biografou), Turner, Van Gogh, Picasso (sobre Guernica e a releitura de Goya) e Rothko - em quem diz ver uma poderosa busca de “envolvimento com o público”, ainda que não note como esse envolvimento pressupõe uma disposição metafísica que nem todos aceitam.
O que essa dupla de intelectuais quer dizer, no fundo, é que a arte moderna, transformadora como foi e ainda pode ser, deixou um legado teórico problemático. Ao endeusar ou demonizar o progresso, criou a idéia de que tudo que lhe antecedeu pertencia a uma mesma ordem. Críticos como Herbert Read e Clement Greenberg colocaram a história da arte numa linha “evolutiva”, como se Rembrandt - e não escolho o exemplo por acaso - tivesse como intenção copiar a realidade tal como é, de modo fixo e não aproximativo, e como se uma linguagem experimental fosse apenas a que traz um procedimento até então inédito, e não a que é original ao propor novos termos de ver o mundo. Este debate ainda vai longe.
RODAPÉ
O novo romance de Bernardo Carvalho, com o belo título O Sol se Põe em São Paulo (Companhia das Letras), é um exemplo desses problemas que afligem a arte pós-vanguardista, travada na armadilha da metalinguagem. Ele faz mais uma vez um jogo de identidades trocadas, ou emprestadas, na história que seu narrador, um publicitário paulista candidato a romancista, escuta de uma japonesa imigrante sobre suas relações no Japão do pós-guerra. E a confusão entre realidade e ilusão é um estratagema literário que antecede em muito os modernos, que decidiram colocar a própria literatura no labirinto. Alguém ainda suporta escritor como personagem?
Esperava-se ao menos uma narrativa envolvente e elaborada, como em Nove Noites e Mongólia, e não um empilhamento de descrições indiretas em linguagem casual. Desta vez não entramos no ambiente imaginário porque não contém uma situação estranha como a do antropólogo na floresta ou a do nomadismo mongol. A trama, embora cheia de eventos, é feita de triângulos amorosos, e a escrita se sustenta em clichês como “fazendo dela gato-sapato” e “amor e ódio são indissociáveis”. E o tema da cidade de São Paulo, de sua modernidade de fachada, sua “vontade de passar pelo que não é” - “o que a cidade tem de mais pobre e paradoxalmente mais autêntico” - , termina como um mote sem glosa.
POR QUE NÃO ME UFANO (1)
Todo mundo faz questão de encher a boca para dizer que o etanol nacional é mais barato e produtivo que o americano. E que um acordo com Bush só pode acontecer se ele derrubar barreiras tarifárias. Ok, perfeito. Mas dê uma olhada no número de usinas que os EUA vão construir nos próximos anos. Logo estarão produzindo cinco vezes mais etanol que o Brasil. E volume faz diferença...
POR QUE NÃO ME UFANO (2)
Por falar em educação, a proposta do ministro Fernando Haddad, que quer mais R$ 8 bilhões para a área, foi uma decepção. Algumas coisas fazem sentido, como se sabe; o melhor exemplo é o investimento em ensino técnico. Mas, além de nada mencionar sobre a necessidade de mexer em custos (o Brasil gasta 5% do PIB, mas gasta mal), não se tocou na questão do conteúdo, como se resolver o problema quantitativo fosse resolver o qualitativo. Tão progressista, esse governo!