A visita de menos de 24 horas do presidente Bush ao Brasil confirmou as previsões - manifestadas no editorial A retórica da ‘Opep do etanol’, de 27 de fevereiro - sobre a falta de base das trepidantes expectativas de que o motivo da vinda do titular da Casa Branca seria o desejo dos Estados Unidos de formar uma portentosa parceria com o Brasil no setor de biocombustíveis. A porosidade do protocolo de intenções a esse respeito, assinado ontem em São Paulo por Bush e o seu anfitrião Lula, deixou claro que o alarido que precedeu a chegada do mandatário americano expressava, do lado de cá, uma fantasia; e, do lado de lá, mal disfarçava o real propósito político de uma viagem que começava, mas não terminaria no Brasil.
O giro de Bush pela região é essencialmente a tardia tentativa de um presidente politicamente desidratado de responder às críticas, de dentro e de fora dos Estados Unidos, segundo as quais a negligência, quando não a mão pesada da sua política externa em relação à América Latina, sem falar na rigidez da política comercial, contribuiu poderosamente para a expansão do populismo do coronel Hugo Chávez. A sombra do caudilho venezuelano se projeta hoje sobre a Argentina, a Bolívia, o Equador e a Nicarágua - devidamente excluídos do roteiro que leva Bush também ao Uruguai, Colômbia, Guatemala e México. O grande complicador, para ele, é que os chavistas estão longe de ser os únicos a condenar o bushismo.
De mais a mais, é negligível a capacidade do presidente americano de reduzir substancialmente, a esta altura de um alquebrado segundo mandato, o seu déficit latino-americano. A Alca se fue, e é de todo improvável que o álcool seja o novo combustível de uma aliança efetiva entre os EUA e os vizinhos ao Sul. A questão de fundo é que Bush não tem e não terá capital político, em seu país, que o conduza das palavras às ações. Depois de perder estrepitosamente a maioria no Capitólio, nas eleições de novembro passado, carece das condições mínimas para mexer nas regras das relações comerciais da América do Norte com a América Latina. Justiça se lhe faça, ele reconheceu abertamente essa realidade.
Na entrevista que concedeu na terça-feira a cinco jornais da região, entre eles o Estado, admitiu que não conseguirá recorrer à Trade Promotion Authority (TPA) para renovar acordos bilaterais de comércio sem o aval legislativo, no mecanismo chamado fast track. Mais importante ainda, afirmou, resignado, que o seu país é protecionista. Foi como se atestasse que os poderes executivos dos quais usa e abusa na política externa e militar não se estendem à política comercial. Nessa frente, o Congresso dá a última palavra. E ela sempre tenderá a ser favorável aos opulentos subsídios para o agribusiness, “tão nefastos ao livre-comércio que tanto apregoamos”, como fustigou Lula enquanto o americano voava para o Brasil.
Ontem a imprensa antecipava que ele iria reivindicar a redução da sobretaxa que incide sobre as importações de álcool combustível brasileiro. Para entrar nos EUA, o produto paga US$ 0,14 por litro, mais 2,5% de imposto. Se o fez, foi só para “cumprir tabela”, como diria Lula com o seu gosto por metáforas futebolísticas, ciente da impotência da Casa Branca na matéria, pelo menos sob o atual inquilino. Desinflada, pois, a bolha do etanol - que serviria para fixar no imaginário nacional a miragem de que o País de Lula finalmente ascenderá ao Primeiro Mundo pela via politicamente correta do biocombustível, alternativa para o petróleo poluente e com fim previsto -, resta da passagem de Bush por uma São Paulo submetida a rigores de segurança dignos de uma ameaça de guerra um ar de much ado about nothing (muito barulho - ou incômodo - por nada).
É indiscutível, em todo caso, que a penetração do chavismo o obrigou a voltar atrás na sua política latino-americana, levada à inanição desde o 11 de Setembro. O fato de que a forma por ele encontrada para passar esse recibo se traduza praticamente em concessões simbólicas não deve toldar a percepção da mudança que, aliás, não se limita ao plano das relações com a América Latina.
Do mesmo modo, guardadas as proporções, a derrocada a que o Iraque empurrou o bushismo nos EUA parece obrigar o presidente a outra guinada: dialogar, finalmente, com o Irã e a Síria sobre a catástrofe iraquiana. E o estabelecimento de relações com a Coréia do Norte não deve tardar.