Artigo - Jarbas Passarinho |
O Estado de S. Paulo |
20/3/2007 |
Tem sido comum reconhecer que, ideologicamente, o mundo passa por transformações de grande vulto, desde o colapso do socialismo real, último apelido dos 72 anos de comunismo soviético, precedido da queda do infame Muro de Berlim. A propaganda, ao que se pode inferir, visava a antepor o comunismo antes irreal ao novo, maquiado com o adjetivo, mas mantida a substância na nova embalagem. Seus dogmas permaneceram os mesmos desde Lenin, entre eles a necessidade crucial de acabar com a burguesia, “fonte de todos os vícios e maldades”. Entre estas avultava a propriedade privada. No Manifesto de 1848, Marx escreveu que “a teoria do comunismo pode ser sintetizada numa simples frase: abolição da propriedade privada”. A China poderia ser o último baluarte do socialismo real, depois de expurgados os letais efeitos de Mao Tsé-tung e esquecidos os milhões de chineses mortos na estúpida Revolução Cultural. Aos poucos, todavia, foi mutilando a bíblia marxista. Aceitou de bom grado a participação do capital estrangeiro. A globalização ajudou a criar os ricos, especialmente do litoral modernizado no estilo capitalista, em contraste com a imensa massa de pobres. Direito constitucional passou a ser o da propriedade privada, mas sua regulamentação só agora foi feita, caminho para tornar efetiva a economia de mercado, no inventado “socialismo de mercado” que faz da China, hoje, o terror das bolsas capitalistas, que desabam ao menor sinal de diminuição de seu crescimento anual do PIB, já tradicional em 10% ao ano. É, de fato, uma revolução da ideologia que, desde o século 19, chegou a ter mais adeptos nos dias hodiernos que o cristianismo, nada obstante as surpresas no catolicismo jamais imaginadas pelo Santo Padre Pio XI na encíclica de firme combate ao comunismo. A Teologia da Libertação é uma dessas surpresas que levaram o beatífico dom Paulo Evaristo Arns a endereçar a Fidel Castro, nas comemorações do 30º aniversário da revolução comunista, carta gratulatória que provocou imediato protesto dos bispos cubanos homiziados em Miami. Aqui, “na terra em se plantando tudo dá”, o mais consentâneo com a imagem de Caminha é a política. Nela também, até sem ser preciso plantar, tudo dá. A desculpa dos mais letrados invoca Ortega y Gasset: “Eu sou eu e a minha circunstância.” O então temido Lula, signatário do Foro de São Paulo, iniciativa do Partido Comunista Cubano, ameaçava vingar Marx, reeditando-o nas latitudes sul-americanas, de modo a corrigir os erros cometidos nos satélites de Moscou, na Europa Oriental. Fidel Castro, o nume tutelar desse Foro, resistia à perda da gorda pensão que lhe dava Moscou, desde que Gorbachev se converteu à democracia. O Foro paulista era uma tentativa solidária de sobrevivência na ilha paradisíaca da tão empobrecida sociedade sem classes, de cujo paraíso, correndo o sério e real risco de morrer em naufrágio, fugiram milhares de balseiros para a Flórida. Lula, que o venerava, mudou como o mundo mudou. Confirma a máxima de Raymond Aron: quando o burguês assume o poder, permanece burguês, mas o operário vira burguês tão pronto dirija fábrica ou um Ministério. Quanto mais ocupando a curul presidencial, acrescento eu. Na República sindicalista em que vivemos, isso se dá de ministros ao presidente de origem operária. Mas não só os operários. Geddel Vieira Lima, filho do grande Afrísio Vieira Lima, meu inesquecível amigo e contemporâneo no Congresso, era um combatente ardoroso contra Lula. Dono de uma verve admirável, era da fatia antigovernamental do PMDB. Vai ser um eficiente ministro da Integração Nacional. Ganha Lula o seu talento e a aversão dele a Antônio Carlos Magalhães, que parece ter o hábito de romper com antigos amigos, cuja amizade contraria os versos de Shakespeare, pois não prende com colchetes de aço amizades provadas. A circunstância de Geddel foi ACM. José Sarney perdoou os agravos feitos a ele, presidente, por Lula, candidato, em comício eleitoral. A conciliação é da índole do suave poeta, agora conselheiro precioso de Lula, presidente. Justiça se faça: Sarney foi arrastado a votar em Lula. A circunstância de Ortega foi a justa e sagrada indignação (como diz Bobbio) com a maldade atribuída a José Serra, quando invalidou a candidatura crescente da respeitável governadora Roseana Sarney à Presidência da República. Maquiavel ensinou que é mais fácil perdoar quem nos matou o pai do que quem violou nosso bolso. No caso, o bolso era uma candidatura que se avolumava a cada pesquisa e que foi abalada por uma versão infame. Custa-me a crer que Serra tenha sido o mandante da Polícia Federal na empreitada suja. Ela se iniciava na conduta fartamente repetida, hoje, de algemar pessoas - para gáudio da mídia fotográfica - simplesmente por denúncias, não investigada a justeza. Por outro lado, até hoje, passados meses, não conseguiu saber a origem do dossiê de R$ 1,7 milhão que - justificou o ministro de então - seria possível obra dos “aloprados” do PT. As calúnias, que, como diz o provérbio indiano, quando não queimam, tisnam. O que poderia respingar no presidente inocente. Maluf, em entrevista, disse que Lula “malufou”. Dificilmente eu poderia identificar nisso a circunstância de Gasset, a menos que seja uma recompensa à ameaça do Fisco norte-americano, que faz, por enquanto, muito temerário ele viajar para os Estados Unidos. Mas seu partido, o PP, cuja Executiva Nacional acaba de intervir em São Paulo para fazê-lo presidente regional, preservou o Ministério das Cidades. Em São Paulo, o campeão dos votos paulistas, se lhe for arriscado viajar para os Estados Unidos da América, pode tranqüilamente agradecer os votos da cidade paulista de Americana.
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