Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, março 14, 2007

Lula em duas fotos e um gesto - Roberto DaMatta




O Globo
14/3/2007

Pertencem ao presidente Lula as duas fotos da semana. Na primeira, vemos o presidente batendo pênaltis num governador-goleiro Sergio Cabral. Na segunda, nós o encontramos sorrindo um sorriso abafado pelo abraço americano - um "bear hug", como eles dizem por lá - do presidente-diabolizado, George W. Bush.

Maravilhosas e dignas de comentário essas fotos de um Lula em plena forma como presidente e político que, nos dois casos, ressaltou aquilo que todos sabem, mas pouco admitem. A do consumado político, cuja simpatia pessoal fala mais alto do que as mais veementes e, no caso da pátria brasileira, falsas filiações ideológicas e partidárias; a do vigoroso estadista que - a despeito de todas as críticas - obriga o presidente americano a correr o risco de vir ao Brasil para encontrá-lo, prometendo aquelas compreensões de estado que tem razões que o coração desconhece.

Foi isso que vi nos olhos de Bush e Lula na foto do abraço. Eis, disse a mim mesmo, a antipatia diplomática sendo interrompida pela afabilidade que permite a menção freudiana, um tanto moleque e não prevista, de um ponto "G" no meio de um encontro onde se teme, com o perdão do trocadilho, pisar em ovos. Aquele ponto "G" que os entendidos em sexo afirmam ser o Nirvana dos encontros eróticos, desde que seja devidamente tocado pelo perito.

Vindo de um presidente que, dias antes, ao lançar um programa destinado à prevenção sexual entre os jovens, declarou que sexo é alguma coisa que quase todo mundo gosta, a menção ao ponto "G" simboliza o aberto otimismo de um político que tem o controle do sistema nas mãos e que não teme nem mesmo o demônio que viria enxovalhar o solo do nosso imaculado Brasil.

Não devem ter sido, pois, por acaso as menções positivas à sexualidade no seu sentido mais prazeroso, pois a foto de Lula fazendo gols num risonho e feliz governador Sergio Cabral apenas dava testemunho de um bem-estar com a vida, mesmo nesses dias que antecedem um ministério que, pelo visto, pode muito bem ficar perfeitamente inacabado, como aquela célebre sinfonia de Schubert. De fato, para que ministros e governo se o Brasil vive o sonho dos velhos anarquistas e segue o seu rumo provando que o desgoverno é (apesar de tudo) um fato entre nós?

Entre, porém, a ausência de qualquer interesse na administração do cotidiano - com suas rotineiras tragédias promovidas, entre outras coisas, por uma intolerável e paradoxal violência -, segue o show de bola que o presidente Lula tem dado a amigos, asseclas, correligionários, clientes, admiradores, inimigos, críticos e observadores em geral.

Como não admirá-lo se ele tem sido o jogador que melhor compreende o sistema? Se ele tem sido o político que mais tem conseguido transformar as suas propaladas desvantagens - Lula seria analfabeto, sem berço, iletrado etc. - no mais fulgurante capital político, pois, melhor do que ninguém, ele sabe que, no Brasil, o que conta entre os políticos e todos que gravitam em torno de um poder supremo porque não tem regras, escrúpulos ou culpa não é um diploma, inteligência ou título, mas a coragem de deixar o pessoal pastando nos pedidos, patinando no puxa-saquismo e enrolado na sua resplandecente pusilanimidade.

Que maravilha foi o encontro com os governadores simbolizada em seguida na foto feita no Maracanã reformado, quando o presidente, de pé no chão, como manda a regra de todas as peladas futebolísticas, bateu uma série de pênaltis num governador Cabral sem sapatos, mas de meia. Seria possível uma imagem mais reveladora? Aqui está o presidente que mete gols nos governadores, no congresso e em toda a sociedade que assiste mesmerizada à sua capitalização impecável de um segundo turno e mandato, quando também coloca no córner do esquecimento todos os escandalosos gols-contra do PT no seu primeiro governo. Aqui também está um presidente de pé no chão diante do poder à brasileira. Esse poder que só se move por meio de conluios e escândalos. Ora, se nada ocorre no campo ou do estádio, como criticar o governo e esse endiabrado Lula que, descalço, encaçapa, como um Ademir, esses governantes que jogam de meia e que ainda não descobriram como fazer uma oposição fundada em princípios e em valores - oposição que trata do cotidiano e do que nele falta - e não nos escândalos que escapam das rotinas?

Mas, e o gesto, onde está o gesto? Ora, o gesto foi a visita que o presidente fez ao senador Antonio Carlos Magalhães, quando esteve no Incor para um exame rotineiro de saúde. Como não houve fotografia, a visita não foi registrada como mais um feito político. Mas, como disse o próprio presidente Lula no rádio, era a visita do presidente ao senador. Era também o preito de humanidade que o saudável leva ao enfermo, como mandam as regras da civilidade cristã e da convivência democrática. Eram códigos maiores que os interesses político-partidários e das simpatias pessoais, porque foram feitos para que todos os sigam, como, aliás, fez o presidente goleador, exemplarmente.

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.

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