João Ubaldo Ribeiro
Nunca mais falei neles, mas continuam a ter grande importância em minha vida os meus críticos de calçada. Principalmente críticas, pois, não sei por que, a maior parte é constituída de senhoras, algumas de meu tope, outras um tantinho acima, embora eu nunca vá dizer isto a nenhuma, não quero fazer inimizades à toa. Este é o terceiro domingo depois de minhas movimentadas férias hospitalares e já comecei a ouvir reclamações. Como a que recebi enquanto mantinha uma breve conversação com Salvatore, o dono de uma das bancas de jornais que costumo freqüentar, a respeito do fim do mundo, que tanto para ele como para mim é coisa para mais dia menos dia. Porca misèria, vecchierelli é o que nós somos, rosnava Salvatore, uns velhotes decadenti. Ia eu retrucar, alegando sem muita convicção que não era tanto assim quando - falai no mau, aprontai o pau - uma velhota de catadura severa e, como se dizia antigamente, olhos de verruma se deteve e me fitou com ar de reprovação, sem falar nada durante tanto tempo que eu já estava ficando sem graça e Salvatore, que não é o rei do bom humor, já ia perguntar a ela cosa vuoi, viecherella sei anche lei, ou algo bem pior.
- Voltou alegrinho depois das férias, não foi? - disse ela finalmente, sublinhando as palavras com o saco de pão que trazia numa das mãos.
- Bem, de fato eu escapei de um problema sério, eu...
- Eu sei de tudo. Mas não é desculpa, não é desculpa absolutamente.
- Não é desculpa, como assim?
- Não é desculpa para amolecer!
- Amolecer? Eu estou amolecendo?
- E muito! Não é hora para fazer graça, não pode dar moleza, tem que cair de pau nessa corja todo dia, tem que bater firme no governo.
- Mas eu... O governo...
Ela, contudo, visivelmente uma mulher de convicções sólidas, não quis mais conversa e, com uma rabanada muito espigadinha, foi saindo. Na esquina, deu uma parada, fez uma meia-volta quase militar e desferiu seu cruel comentário final. Eu estava ficando deploravelmente acomodado e, se não desse um jeito imediato na situação, ela nunca mais me leria - e olhe que antigamente era tiete de carteirinha!
Podem vocês então imaginar como estou encarando nervosamente este teclado. Assim como ela, outros e outras também se manifestaram. Ter-se-á declarado uma crise entre o leitorado e o que escrevo? Nada mais assustador para quem tem uma coluna regular. Mas, pensando bem, não será uma injustiça comigo? Como é que eu vou descer o malho em alguma coisa que ainda não existe? Todo mundo está vendo o presidente dizer que não tem pressa nenhuma, nem começou direito o segundo mandato. Não está certo criticar um governo que ainda não começou, nem tem data marcada para começar. Não é tão simples quanto pode parecer, mesmo agora, que a herança já é bendita.
E o que está havendo, vamos e venhamos, não pode ser criticado. Eis aí, por exemplo, o PAC, que não me deixa mentir. O fato de estar sendo, pelo jeitão até agora revelado, apelidado de PAC-Derme e EM-PACado, só demonstra falta de boa vontade, vamos deixar o homem trabalhar, como, por exemplo, na arrumação dos ministérios. Continuo a esposar a tese warholiana de que, no futuro, todos os governistas ocuparão um ministério durante pelo menos 15 minutos. E para isso não será preciso demitir ninguém, coisa de que o presidente não gosta, basta continuar a criar ministérios ou secretarias com status de ministério, além de deixar que os que causam problemas caiam sozinhos mesmo, como é costume dele.
Costurando sua base partidária, o presidente já criou o ministério (ou secretaria-ministério, não sei bem) de Portos e Aeroportos. E, se esse e uns dois outros já cogitados não bastarem, tenho certeza de que há inúmeros na algibeira. Assim de cabeça, posso lembrar o Ministério de Formulários, Despachantes e Recadastramentos, para ajudar o cidadão a enfrentar a formidanda burocracia estatal; o Ministério de Relações Matrimoniais, para resolver de vez o problema do casamento homossexual e baixar por medida provisória a Cartilha do Casal, a ser obedecida por todos, inclusive no que tange ao que pode e ao que não pode na discutida conjunção carnal, da qual, em recente improviso, o presidente já demonstrou que é grande conhecedor; o Ministério de Pontes, Viadutos, Passarelas e P
guelas; o Ministério de Excrementos e Resíduos Destinados à Agricultura - o popular Merda - incumbido de aproveitar a nossa abundantíssima produção, material e metafórica, desses insumos agrícolas e mentais de que tanto dependemos; o Ministério da Malhação e da Aeróbica; o Ministério dos Flanelinhas, Malabaristas de Sinais de Trânsito e Guardadores de Lugares em Filas; e por aí vai, numa sucessão interminável de áreas a ministeriar e de cargos a dar para assegurar a também famosíssima governabilidade, vocês é que pensam que vida de presidente é mole.
Acrescente-se que o presidente, numa tacada que surpreendeu o mundo, descobriu o ponto G, coisa para no mínimo um premiozinho Nobel, já que se trata de feito quase tão difícil quanto realizar a quadratura do círculo ou achar a fonte da juventude. Tem gente, homens e mulheres, que até hoje procura o ponto G e não acha, assim fazendo do presidente não só o melhor presidente em todos estes 500 anos de República, como também o mais gostoso desde d. Pedro Deodoro. Francamente, não dá para criticar. E, mais ainda, manda a honestidade admitir que, quando o governo criar o Ministério do Ponto G ou o Bolsa-Ponto G, a minha humana fraqueza talvez me leve a apoiá-lo.