Entrevista:O Estado inteligente

domingo, março 18, 2007

DANIEL PIZA

Vista da Holanda


Um dos bons motivos para viajar é corrigir a imagem que temos dos outros países. A Holanda, de um lado, é o país dos moinhos, das tulipas, da liberdade contracultural ou até do muro amarelo com sua beleza auto-suficiente que o escritor Marcel Proust encontrou no quadro Vista de Delft, de Vermeer. Do outro, é o país do barroco extraordinário de Rembrandt no século 17, de uma opulência opressiva que muito marcou o que se chama de cultura européia, e o país do qual Van Gogh precisou partir no fim do século 19 para descobrir as luzes primárias da modernidade. Ou então seria uma combinação de ambos, uma nação do Velho Mundo com abertura à tolerância multicultural dos novos tempos - uma tradição que não pesa, uma leveza que não se evapora.

Raros países conseguem cumprir nossas expectativas, alimentadas por tantos cartões-postais e generalizações fáceis - e de repente nos vemos caminhando em Tóquio à procura de um bosque, uma cerejeira sequer, que na verdade nos esperam em Kyoto. A Holanda não contradiz tanto nosso estereótipo. No entanto, ela se move, e não só para a frente. Meninos fumando baseado nas pontes sobre os lindos canais margeados por aqueles prédios baixos, de tijolos aparentes cuja sucessão é animada por ornamentos em branco e variedade de tons, e mulheres muito feias expostas em vitrines, os 'peep shows', não são suficientes para distrair do fato de que a Holanda ainda é uma das traduções mais ricas dos problemas da Europa, tanto quanto de seus atributos.

Fui a Maastricht primeiro, cobrir a Tefaf, uma feira de arte que reúne as melhores galerias do mundo, um museu onde se podem comprar obras. Não é verdade que o mercado de arte não tenha crise, salvo em épocas de guerra ou depressão; e, a julgar pelo movimento e pelos preços da Tefaf, a liquidez da economia atual segue alta. Mesmo que os países europeus cresçam pouco, muito dinheiro continua a circular, e passear pelas cidades holandesas é verificar de novo como índices excelentes de desenvolvimento humano estão ao alcance da humanidade - e, ao contrário do que supõe a mitologia brazuca, sem que isso signifique tristeza suicida, consumismo doentio ou 'tedium vitae'. Maastricht, no extremo sul católico do país, tem 120 mil habitantes, mas um padrão cultural e comercial que supera o de muitas metrópoles sul-americanas.

Sociólogos dizem que a grande arte é produto da hegemonia imperial, e quando pensamos nos tempos em que Amsterdã era a cidade mais poderosa da Europa - o que Simon Schama analisa de modo fascinante em O Desconforto da Riqueza - tendemos a associar esse poder com a arte que Rembrandt, Vermeer e uma série de pintores menos famosos produzia, assim como a filosofia de Spinoza. Existe, sim, uma relação entre desenvolvimento econômico e vigor cultural, mas ela não é nem direta nem contínua. Outros países ricos não produziam o mesmo em igual período, bem como é de países mais pobres que de vez em quando surge o novo. Como mostra Schama, a convivência de calvinismo e hedonismo, nem sempre harmoniosa, explica aquela virada civilizatória; ou, diria eu, explica que Rembrandt se revoltasse contra seus patrocinadores e editores, não fazendo concessões à moda nem permitindo que clareassem as sombras de suas gravuras, que até hoje nos absorvem quando visitamos a Rembrandthuis.

O próprio Van Gogh é exemplo de como a cultura não cabe nos manuais de economia. Sem Rembrandt e a tradição holandesa, não teria começado a pintar aos 25 anos e, apenas sete anos mais tarde, se tornado capaz de fazer Os Comedores de Batatas. Mas o que Rembrandt de certa forma encontrou sem sair de Amsterdã - o confronto norte-sul, que nutria com seu aprendizado do Renascimento italiano, e a atmosfera de ousadia e mistura - Van Gogh precisou ir a Paris para achar, aprendendo a técnica de cor de Delacroix, Millet, dos impressionistas e também da tendência então corrente de cultivar estampas japonesas. Depois de dois anos nessa capital que o deixava irritado, estava pronto para explodir na fusão de cores vivas com densidade dramática.

No conforto contemporâneo, igualmente, as contradições não estão de todo aplacadas. O país até cresce um pouco acima (2,9%) da média continental, mas a carga tributária é tão alta que gera insatisfação e retira dinamismo. Os imigrantes, como turcos e portugueses, chegam a um terço da população, enquanto o governo - desse país que usou de tanta violência na África do Sul, lá de onde vem um dos grandes escritores vivos, J.M. Coetzee - estimula jovens casais a ter mais filhos, pois o envelhecimento da sociedade traz custos de sorte diversa. O bom gosto que vai às compras na Tefaf, passado de geração a geração, não se traduz numa cultura atual tão relevante. E essa Holanda que foi a primeira a aprovar a união gay é também o lugar onde o cineasta Theo Van Gogh foi assassinado por radical que se indignou com seu filme sobre os maus-tratos às mulheres no Islã. Mas a paisagem continua com reflexos dourados, enquanto as tulipas da próxima primavera escutam tantos idiomas.

EDUCAÇÃO ARTÍSTICA

Há algum tempo não recebo tantas cartas sobre um texto quanto o da semana passada, em que reclamei da falta de senso crítico das pessoas diante das obras de arte e me perguntei se as escolas não poderiam ajudar mais. Professoras e arte-educadoras relataram suas experiências. Lucimar diz que leva artigos aos alunos e os alunos aos cinemas e museus para tentar fazê-los pensar, mas que só uma minoria presta atenção. Mesmo assim, ela se sente feliz 'ao mudar a concepção de vida de, ao menos, um aluno por ano'. Hilda diz que meu conceito é arcaico - meu conceito, não, Hilda, mas o dos que me deram aula - e que hoje a realidade é outra. Porém, em seguida diz que já foi 'criticada e/ou demitida' em muitas escolas porque suas aulas 'incomodavam os outros professores'. E conta que a Prefeitura de São Paulo, querendo espaço para mais salas, desmontou o único palco da escola pública onde trabalha.

Petra conta caso semelhante em Santo André: ' Depois de mais de 30 anos dando aulas de Desenho Geométrico, Educação Artística e Teatro, este ano fiquei sem aula nenhuma, pois não tivemos o número mínimo de alunos para formar uma classe que fosse de primeiro ano de ensino médio .' Elaine lembra que, na escola, a professora de Educação Artística fazia que os alunos decorassem ' dados da vida de grandes compositores, como o ano de nascimento e morte, e os títulos de suas obras' - e que 'jamais ela nos fez ouvir qualquer uma das músicas'. Mas também diz que hoje conhece crianças que vão aos museus e falam de Tarsila ou Picasso. Carolina também diz que há avanços, especialmente na 'educação não-formal promovida por museus, centros culturais e ONGs '. De uma dessas entidades, Arte na Escola (www.artenaescola.org.br), recebo material alentador. Talvez seja por aí.

UMA LÁGRIMA

Para o escritor Gerardo Mello Mourão, morto aos 90 anos. Foi muito influenciado pelo poeta americano Ezra Pound, mas com uma dicção diluída pela sentimentalidade latina de Iommi e Neruda, seus grandes amigos. Seu livro Os Peãs é carregado de erudição e tem alguns versos bons, como o refrão 'Hei de lavrar nestas terras a escritura de meu canto'. E seu livro 'cult', O Valete de Espadas (1960), é um romance expressionista que não funciona como romance, mas tem prosa poética com muitos achados. Requiescat in pacem.

CONTRADIÇÕES DA HORA

Bento XVI, 2007: 'O segundo casamento é uma chaga social.' Cyril Connoly, 1946: 'O segundo casamento é sempre o melhor.'

POR QUE NÃO ME UFANO (1)

As declarações esdrúxulas de Lula são tantas que já ganharam a bonomia do folclórico. Depois de, recentemente, quase reeditar o 'Brasil, ame-o ou deixe-o' do regime militar e de dizer que tem 'uma massa encefálica dentro do cérebro', vem agora com essa de afirmar que a educação brasileira é 'uma das piores do mundo' e que precisa de reforma qualitativa. Ok, certo. Mas por que ele diz isso como se nada tivesse a ver com o problema, como se fosse um turista espacial que acaba de aterrissar, e não um presidente que passou um mandato inteiro sem fazer nada por isso, nem mesmo uma frase tola?

POR QUE NÃO ME UFANO (2)

Na mesma fala, com o mesmo tom de 'isenção', Lula mencionou o problema da violência , das 'barbaridades que vemos na TV'. Cheguei de viagem na terça e liguei a TV no horário do Jornal Nacional. O bloco inteiro era sobre crimes chocantes, que Fátima Bernardes relatava com indisfarçável desolação. A menina que ficou paraplégica em São Paulo, a criança abusada e depois largada em pia batismal em Santa Catarina, o tiroteio que fez mais duas vítimas de balas perdidas no Rio, etc. Não, não é o apocalipse, o desprezo generalizado pela vida humana. E não, não se trata de esperar educar a nova geração. São problemas complexos e concretos, em grande parte ampliados pela impunidade e corrupção das autoridades. Mas, se a autoridade maior lava as mãos como se fosse mais um espectador impotente, o que esperar?

E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br

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