Artigo - |
O Globo |
6/3/2007 |
Em excelente reportagem de Fernando Canzian, na "Folha de S.Paulo", Elieida de Oliveira, de 27 anos, disse que não quer de jeito nenhum trabalhar com a carteira assinada: teme deixar de receber os R$80 do Bolsa Família e perder o direito de se aposentar aos 55 anos, como trabalhadora rural, sem precisar contribuir para o INSS. Moradora de Brejões, a 281 quilômetros de Salvador, ela tem dois filhos e trabalha ilegalmente numa das fazendas da região. Ganha R$225 por mês, quando poderia tirar, pelo menos, o valor do salário mínimo, R$350, se tivesse a carteira assinada. A reportagem mostrou que, na região, os maiores empregadores, corretamente fustigados pela Delegacia Regional do Trabalho, tentam contratar trabalhadores legalmente, mas não encontram pretendentes. Como resultado, estão substituindo o homem pela máquina: em apenas uma fazenda, cinco mil trabalhadores foram substituídos por colheitadeiras, que são operadas por um único homem. Elieida é apenas um entre muitos exemplos que o repórter encontrou. Todos com medo de serem "fichados", termo pejorativo que dão às carteiras assinadas. Elieida e pessoas como ela estão certas. Apesar de uma grande frustração pela tragédia que a reportagem mostrou, tive ao menos esse consolo: comprovar mais uma vez que, rico ou pobre, todos agimos racionalmente, fazendo cálculos sobre o que é melhor para o nosso futuro. Errado está o governo. Têm direito ao Bolsa Família cidadãos com renda per capita de até R$120. Como Elieida tem 2 filhos e é casada com um homem incapacitado para o trabalho, se ela recebesse um salário mínimo, a renda per capita dela seria de R$87,50 reais, o que a manteria entre as elegíveis para o programa. Ao saber disso, o governo disse que Elieida estava desinformada. Prefiro achar que ela, ao somar todas as rendas que tem, encontrou um número diferente do que divulga e resolveu não arriscar. De qualquer modo, ela também já estava pensando, aos 27 anos, na aposentadoria: se ela tiver a carteira assinada por um único dia em toda a sua vida, terá de contribuir para o INSS por no mínimo 15 anos para ter o direito de se aposentar aos 55 anos sem pagar nada em troca. Elieida pensa no futuro, e isso é bom. Escandalosa é a solução que o governo encontrou para esta distorção: enviou ao Congresso um projeto de lei determinando que não perderá o direito à aposentadoria especial o trabalhador rural que tiver registro em carteira por até 120 dias por ano, tempo que dura o trabalho sazonal no campo. Ou seja, em vez de acabar com a aposentadoria especial tal como ela está posta hoje, o governo propõe uma medida no sentido de eternizá-la. Quando a Constituição de 88 a instituiu, seu objetivo, acertadamente, era dar conta de uma massa de trabalhadores que, ao longo de vidas inteiras, deram seu suor no campo sem carteira assinada e que, ao chegarem aos 55 anos, no caso das mulheres, ou 60 anos, no caso dos homens, viam-se sem direito algum. Quase vinte anos depois, porém, é preciso modernizar o campo, encontrando mecanismos que estimulem o trabalho formal e a contribuição ao INSS por parte dos trabalhadores. Mas o que o governo faz é tornar a coisa perene. Hoje, há 7,6 milhões de trabalhadores rurais na ativa e 7,15 milhões deles aposentados. As contribuições recolhidas são suficientes para fazer frente a apenas 13% das despesas com aposentadorias rurais. A aposentadoria urbana por idade é também algo de surreal. Hoje, qualquer um pode se aposentar aos 60 anos, se for mulher, e aos 65, se for homem, desde que tenha contribuído por 13 anos (em 2011, o tempo mínimo será de 15 anos). Ocorre que a Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) estabelece que todos, aos 65, com renda per capita inferior a um quarto de salário mínimo, têm direito a um benefício de um salário mínimo (e, segundo a lei 2.720, não é preciso comprovar renda). As duas leis são incongruentes. Quem, na baixa renda, vai querer contribuir por 15 anos para ter uma aposentadoria com valor próximo ao do mínimo, se sabe que aos 65 anos terá um benefício parecido mesmo sem contribuir? E o presidente Lula ainda repete que a Previdência não precisa de reformas. O curioso é que outra excelente reportagem de Bruno Dalvi, Isabela Martin, Efren Ribeiro, Helena Frasão e Ismael Machado, publicada no GLOBO, já tinha revelado outro aspecto do que vem acontecendo: trabalhadores também largaram o subemprego (lavar roupa para fora, carregar sacos de farinha no mercado, empregos domésticos sem carteira assinada) porque o dinheiro do Bolsa Família passou a ser suficiente. O dado positivo é que o Bolsa Família tem ajudado a acabar com o trabalho indigno, mas me pergunto: por que será que esses cidadãos não quiseram somar ao Bolsa Família o dinheiro que antes vinha daqueles bicos e que poderia até dobrar a renda? Das duas, uma: ou são desprovidos de ambição ou a vida no país não está tão cara, qualquer dinheiro serve. Seja o que for, não é boa notícia. O governo tem gastado R$9 bi com o Bolsa Família, mantendo a retórica de que o programa se destina a matar a fome dos brasileiros, quando pesquisas oficiais já demonstram que a fome não tem mais esse tamanho todo. Enquanto isso, a educação continua uma falsa prioridade: o Fundeb, que atuará em todo o ensino básico, apenas ao fim de quatro anos significará investimentos novos da ordem de R$4,5 bi, metade do que vai para o Bolsa Família. E o resultado continuará sendo este que as estatísticas do Censo Escolar de 2006 mostram: 75% das escolas de ensino fundamental no Brasil não têm sequer biblioteca, 91% não têm laboratório de ciências, 80% não têm sala de vídeo, 62% não têm computadores, 83% não têm laboratório de informática e 80% não têm acesso à internet. Sem educação, este país vai continuar o mesmo. Elieidas, ainda aos 27 anos, vão continuar dependendo do Bolsa Família e se recusando a ter carteira assinada, sonhando com o dia em que se aposentarão sem ter contribuído para a Previdência. ALI KAMEL é jornalista. E-mail: ali.kamel@oglobo.com.br. |
Entrevista:O Estado inteligente
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