Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 10, 2007

A Funai quer demarcar reserva para paraguaios

Made in Paraguai

A Funai tenta demarcar área de Santa Catarina para
índios paraguaios, enquanto os do Brasil morrem de fome


José Edward, da Serra do Tabuleiro (SC)


Fotos Hermes Bezerra e Luis Carlos
À esquerda, embiás, que foram considerados carijós. À direita, um grupo de crianças caiabis, tribo que pode ganhar uma reserva para além dos poderes do deus Tupã


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No período do descobrimento, o litoral de Santa Catarina era habitado por índios carijós, subgrupo do povo guarani. Escravizada pelos colonizadores portugueses, a etnia foi considerada extinta em meados do século XVII, segundo os registros dos historiadores. Essa versão não foi contestada até 1993, quando a Fundação Nacional do Índio (Funai) adotou a tese – controvertida – de que ainda havia remanescentes dos carijós. A fundação se baseou num estudo publicado dois anos antes pela antropóloga Maria Inês Ladeira. Ela defende que alguns dos carijós teriam se refugiado no Paraguai, onde seriam chamados de embiás. Depois que o trabalho foi divulgado, dezenas de embiás paraguaios (e alguns argentinos) sentiram-se legitimados para invadir o parque ecológico da Serra do Tabuleiro, nas imediações de Florianópolis. Os índios se instalaram no Morro dos Cavalos, um dos pontos mais acidentados da região. Invasão consumada, a Funai planeja transformar o local em reserva indígena. Para brasileiro pagar e paraguaio (e argentino) usufruir.

Muito escarpada, a região é considerada imprestável tanto para a agricultura quanto para moradia. Mas ganhou valor econômico porque o Morro dos Cavalos fica à margem da Rodovia BR-101, que atravessa a maior parte do litoral brasileiro e está sendo duplicada. A pista adicional cortará a área que a Funai quer converter em reserva para os embiás. Com base nisso, a fundação determinou que o Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (Dnit) construa túneis sob o Morro dos Cavalos para não incomodar os hermanos invasores. A obra foi orçada em 150 milhões de reais. Mais: por exigência da Funai, o Dnit terá de pagar uma indenização aos embiás. Ou seja, os paraguaios (e alguns argentinos) serão compensados já por uma reserva que ainda não foi criada. Como o território que a Funai pretende demarcar está dentro de um parque ecológico estadual, o processo acabou na Justiça. O Ministério Público catarinense tenta impugnar a demarcação. Na opinião de seus integrantes, Maria Inês Ladeira produziu uma fraude e a Funai embarcou nela. "Os carijós tinham características físicas e culturais distintas das dos embiás e estão extintos", afirma o promotor José Eduardo Cardoso.

Segundo o Ministério Público, Maria Inês empenhou-se para convencer a Funai de que os embiás são de origem carijó. Na seqüência, a fundação contratou Maria Inês para elaborar o relatório que instrui o processo de demarcação. O promotor Cardoso aponta falhas metodológicas no estudo que transubstanciou embiás paraguaios (e alguns argentinos) em carijós de ascendência brasileira. Segundo Cardoso, a antropóloga baseou a tese no depoimento de uma única família de paraguaios que chegou a Santa Catarina nos anos 60. Em um trecho do trabalho, ela chega a sugerir que alguns carijós teriam permanecido escondidos no Morro dos Cavalos desde o século XVII. Diz Manoel João de Souza, morador da região: "Acho que eles eram invisíveis. Estou aqui há 87 anos e só vi o primeiro índio nos anos 90".

Wilton Junior/AE
Índios caiovás, em Mato Grosso do Sul: 47 crianças mortas de inanição


Ao comentar o assunto, os embiás são de uma objetividade raramente atribuída ao pensamento indígena. "Os antropólogos nos incentivaram a vir para cá, dizendo que a terra era nossa", afirma o paraguaio Augusto Karai Tataendy, que se mudou para o local em 1992. Eles, no entanto, decidiram deixar a Serra do Tabuleiro mesmo que a reserva seja demarcada. Querem usar a indenização do Dnit para recomeçar a vida em um lugar menos inóspito do que o Morro dos Cavalos. "Vamos pegar o dinheiro para comprar terras em outro lugar. Aqui não dá para viver", diz o cacique argentino Artur Benites. Atualmente, os hermanos vivem dos repasses do Bolsa Família. Foi por um triz que não receberam a bolada do Dnit em 2005. O departamento estava prestes a começar a duplicação da estrada e, por conseqüência, a liberar as indenizações, quando o Tribunal de Contas da União (TCU) declarou que a tese de Maria Inês era inconsistente. Procurada por VEJA para explicar seu estudo, a antropóloga enviou uma correspondência na qual esmiúça as leis e os procedimentos burocráticos da Funai, mas deixa de lado as incongruências históricas e antropológicas apontadas pelos promotores e pelo TCU.

Nos últimos vinte anos, a Funai se converteu numa indústria de reservas. O número de áreas demarcadas saltou de 210 para 611. As aberrações na delimitação de terras para índios são corriqueiras. No Espírito Santo, a fundação classificou moradores de Aracruz de tupiniquins, uma etnia extinta há um século. Para tal, desconsiderou um relatório elaborado por funcionários seus em 1982 que apontava sinais de fraude nesse processo. O documento mostrava como os tais tupiniquins foram inventados por um jornalista e por missionários católicos: "Habitantes da região foram pagos para colocar enfeites de pena na cabeça, usar anzóis adornados à moda indígena e afirmar que moravam em aldeias", registra o relatório. Em outro caso grotesco, a Funai tentou decuplicar uma reserva caiabi do Centro-Oeste do país. A Justiça bloqueou a ampliação porque o presidente da Funai, Mércio Gomes, incitou os índios a invadir a região.

Imbuída de um voraz espírito demarcatório, a Funai é leniente com os índios que vivem em reservas antigas. O exemplo mais eloqüente do fracasso da política indigenista está em Mato Grosso do Sul. As reservas dadas aos caiovás e nhandevas do estado são um cenário de horrores. Nelas, 30.000 índios moram confinados em 40.000 hectares. Nas aldeias, imperam a prostituição, o alcoolismo e, sobretudo, a fome. Desde 2005, 47 crianças caiovás morreram de desnutrição. Neste ano, já houve seis casos. A degradação é tamanha que, por ano, registram-se sessenta casos de suicídio nessas comunidades. O último ocorreu na semana passada. O sociólogo Carlos Siqueira, que chefiou o setor de indigenismo da Funai entre 1997 e 1998, não tem dúvida de que a fundação precisa sofrer uma intervenção. "A Funai está sendo regida pelos interesses dos antropólogos e das ONGs, e não pelos dos índios", afirma Siqueira.

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