No livro fascinante do jornalista polonês recém-falecido Ryszard Kapuscinski, Ébano, há um capítulo sobre um povo africano perdido nos grotões entre Uganda e Congo, os amba. Como boa parte dos antigos povos africanos, os amba acreditam que os males que acossam as pessoas vêm dos bruxos. Têm pena dos ocidentais que atribuem as enfermidades ou os desastres a causas naturais, como um vírus ou um choque mecânico, porque “sabem”, de um saber ancestral, que não é assim: são as bruxarias que comandam o cotidiano. Há que contra-atacá-las com outras tantas magias para anular seu efeito maligno. Em geral, nas culturas africanas a bruxaria provém “do outro”, do outro clã, do outro povo. A peculiaridade dos amba é que eles “sabem” que não é necessariamente assim. A maldade pode vir de um irmão clânico. Como conseqüência, a reação provoca rixas intraclânicas e todos desconfiam de todos.
Há semelhanças nestas crenças com aspectos da cultura ocidental. Não quero voltar ao tema tão aborrecido dos partidos políticos. Em alguns deles prevalece a visão amba: pior inimigo do que o outro lado é o companheiro de partido. É verdade que uma coisa não exclui a outra, pode ser que haja inimigos dentro e fora de casa, tornando a vida uma noite escura, objeto de temor reverencial dos amba. Mesmo em assuntos mais agônicos estamos reagindo às ameaças como se fôssemos amba. É o caso do meio ambiente.
Nada é mais ameaçador para a humanidade que o efeito estufa. As conclusões da reunião do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), recentemente realizado em Paris, afastaram qualquer dúvida sobre o que acontecerá no futuro se medidas drásticas deixarem de ser tomadas desde já: desertificação da Amazônia, inundações provindas da elevação das águas do mar, degelo dos pólos, vendavais e tempestades ao lado de secas, e assim por diante. E não estamos falando do futuro remoto: sinais claros já estão ocorrendo. A pedido do governo inglês, um ex-economista-chefe do Banco Mundial, Nicholas Stern, apresentou em 2006 um relatório que aponta para perdas econômicas anuais correspondentes a 5% do PIB mundial, podendo chegar a 20% se não houver redução do lançamento de gases na atmosfera.
Diante disso, que fazer? Achar que não há causas identificáveis para explicar o fenômeno? Crer que sempre foi assim e que o avanço da tecnologia, por si só, resolverá os problemas? Jogar a culpa no outro (“afinal, os países desenvolvidos foram historicamente os responsáveis pelo efeito estufa, eles que cuidem...”)? Achar que “é a indústria” ou “é a agricultura” que polui - são elas os bruxos -, e não os consumidores? Jogar a responsabilidade nos governos? E os cidadãos, eles não precisam tomar consciência e atuar?
Nenhuma questão é mais desafiadora e mais abrangente que a do meio ambiente. Não se trata apenas do efeito estufa, mas de uma questão mais geral: nossas práticas ocidentais, ao se generalizarem, permitirão a convivência pacífica entre o homem e a natureza e, no limite, dos homens entre si?
Por sorte, apesar de parecer, não somos amba. A ciência avançou e já se sabe bastante sobre várias causas dos desastres ambientais, tanto as naturais como as culturais. Dentre estas é fácil imaginar que a generalização a todos os países do padrão ocidental de consumo das classes médias e altas é insustentável em médio prazo. Basta comparar - e sem tomar como base os mais altos padrões de consumo - São Paulo com a China. Aqui há um carro para cada dois habitantes, em média. Entre 1991 e 2004, o número de autos pulou na China de 100 mil para 2,3 milhões. Para equivaler ao padrão paulista a China daqui a algum tempo (bastante tempo, é verdade) teria centenas de milhões de carros, mesmo se considerarmos somente as áreas urbanas. Mantida a tecnologia atual e sendo impossível generalizar o uso do etanol, imagine-se o que significaria o volume de emissões de CO2 produzido pelos combustíveis fósseis, como o petróleo.
Mas não é justo imaginar que “o inferno são os outros”. Nós continuamos a devastar nossas florestas, apesar dos inegáveis esforços governamentais. Em reunião havida em 2003, em Buenos Aires, para um balanço sobre a emissão de gases de efeito estufa (isto é, que produzem o aquecimento do clima), viu-se que 70% das emissões brasileiras são decorrentes do desmatamento da Amazônia. Outra boa parte decorre da emissão de gás metano resultante do processo digestivo do gado. Quer isso dizer que abriremos mão de criar condições para a exploração sustentável da Amazônia ou da riqueza gerada por possuirmos um dos maiores, se não o maior rebanho bovino do mundo, ou da exportação de suínos? Não. Mas temos de pensar de que maneira organizar a produção e os padrões de consumo para assegurar que nossa economia e nosso estilo de vida serão sustentáveis ao longo do tempo.
O Brasil tem tradição em matéria de meio ambiente. Foi daqui que partiu, em 1992, o primeiro grande grito em defesa da Terra, quando a ONU organizou a Conferência do Rio. Nas discussões de que resultou o Protocolo de Kyoto, uma convenção para evitar os efeitos negativos da emissão de gases que está por trás das mudanças climáticas, nossa posição foi ativa. O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) resultou de uma proposta inicial do Brasil. Em 1999 e em 2000 criamos, respectivamente, a Comissão Interministerial de Mudança do Clima e o Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas. Nossa mídia, por seu lado, está muito ativa na disseminação da discussão pertinente. A Bovespa criou um índice de sustentabilidade, a BM&F trata de viabilizar a compra de CO2 pelo MDL, e assim por diante.
Não será a hora, uma vez mais, de o governo brasileiro se adiantar e, ante a pasmaceira do governo americano (ao contrário da sociedade e das empresas americanas), convocar, através da ONU, uma Cúpula Mundial do Clima, a realizar-se no Brasil, reunindo novamente chefes de Estado e levando-os a uma atitude mais responsável para evitar desastres futuros? Poderemos recordar-lhes que temos interesse vital na Amazônia (para preservar as árvores e a água) e que nossas empresas se adiantaram e tornaram o etanol viável, bem como avançamos tecnologicamente com o flex (o uso flexível de combustíveis pelos autos) e estamos a ponto de criar um setor industrial álcool-químico de efeitos revolucionários.
Com a palavra o presidente da República, que, se quiser trilhar caminhos de convergência e exercer a liderança que o Brasil sempre teve neste campo, tem excelente oportunidade.