O Estado de S. Paulo |
22/3/2007 |
Há 200 anos, em 25 de março, depois de diversas tentativas frustradas, William Wilberforce venceu e seu projeto de abolição do comércio de escravos recebeu o selo do trono britânico. Naquele momento começou o longo declínio do tráfico internacional de seres humanos, uma tragédia multissecular de cujas entranhas emergiram as sociedades contemporâneas da América e da África. O cristão evangélico Wilberforce, um conservador e moralista militante, ergueu-se sobre os ombros de Thomas Clarkson, o fundador, em 1787, da Sociedade para a Abolição da Escravatura, e dos quakers, que formaram as fileiras originais do movimento abolicionista. Incansável, Clarkson descerrou o véu da ignorância hipócrita sob o qual se ocultava o horror. Ele obrigou uma opinião pública de sensibilidades tecidas pela filosofia das Luzes e pela teoria dos direitos naturais a encarar a sua própria imagem, refletida no espelho dos porões dos navios negreiros. Os abolicionistas ingleses venceram, mas não sozinhos. Quatro anos depois da deflagração da campanha de Clarkson, explodiu a revolução dos escravos, no Haiti de Toussaint L’Ouverture. Os haitianos derrotaram as tropas coloniais francesas e, em seguida, se uniram ao governo jacobino da França que acabava de abolir a escravidão para derrotar as forças invasoras britânicas. Mesmo após a captura e morte de L’Ouverture, a revolução não se deteve, expulsou as tropas de Napoleão e, em 1804, à sombra da bandeira da República, emancipou meio milhão de escravos. Os parlamentares aprovaram o projeto de Wilberforce coagidos pelo medo e pelo cálculo político, tanto quanto pela vergonha. O tráfico e a escravidão continuam reverberando, nas consciências e na política. O escritor moçambicano Mia Couto relata um episódio elucidativo, que se passou durante uma visita aos EUA de Honória Bailor-Caulker, uma senhora africana, presidente da câmara do povoado de Shenge, na Serra Leoa. Convidada a pronunciar um discurso, ela subiu ao palco, cantou Amazing Grace e, após demorada pausa, informou à platéia que o célebre hino religioso foi composto por um filho da escravatura, descendente de uma família que deixou Shenge. A platéia, comovida, explodiu em aplausos, mas Honória interrompeu a aclamação e indagou se a homenageavam como símbolo do sofrimento de milhões de escravos. Diante da resposta uníssona, atalhou corajosamente: “Pois eu não sou descendente de escravos. Nem eu nem o autor do hino. Somos, sim, descendentes de vendedores de escravos. Meus bisavós enriqueceram vendendo escravos.” Os europeus, como regra, não caçavam ou capturavam africanos, mas os adquiriam na segurança de suas fortalezas costeiras. A carga humana era fornecida pelos reinos negreiros, alguns muito poderosos, como o Estado Ashanti, da Costa do Ouro, que cobrava aluguel dos traficantes europeus pelo uso das fortalezas e mantinha parte dos cativos como serviçais domésticos de seus chefes. Em 1872, mais de duas décadas depois do encerramento do tráfico atlântico, o soberano ashanti Zey dirigiu uma carta ao rei da Inglaterra solicitando a retomada do comércio de escravos. Yaw Bedwa, da Universidade de Gana, diagnostica uma “amnésia geral sobre a escravidão”. Um silêncio sólido, quase oficial, esmaga o passado terrível em diversos países africanos. O interdito não decorre apenas das conveniências de elites clânicas ligadas por escassas gerações ao negócio do tráfico, mas sobretudo protege uma imagem da África consagrada pelos “pais fundadores”. Esta imagem não nasceu na África, mas entre os intelectuais que inventaram o pan-africanismo, como o americano W. E. B. Du Bois (1868-1963) e o jamaicano Marcus Garvey (1887-1940). Homens de seu tempo, eles interpretaram a História sob o prisma das raças e, sem conhecer o caleidoscópio africano, ergueram a bandeira da Nação-África, cuja unidade repousaria no antagonismo com a figura do branco escravista e imperialista. A narrativa racial da vitimização, fabricada na diáspora, migrou para a África por meio dos líderes das lutas anticoloniais, transfigurando-se depois em verdade de Estado: europeus escravizam africanos, mas africanos não escravizam africanos. Fora da África, entre intelectuais e ativistas dos movimentos negros, a “amnésia” assume formas mais complexas. O antropólogo Kabengele Munanga, da USP, ao distinguir a escravidão tradicional nas sociedades africanas do escravismo mercantil no sistema capitalista, passa ao largo da evidência de que a norma da desigualdade que sustentava a primeira também propiciou a associação entre os reinos negreiros e o tráfico europeu. Munanga sabe o que diz, tanto quanto o que cala. A escravidão tradicional, em vários países africanos, foi abolida apenas no século 20, e por meio das administrações coloniais. Já Nei Lopes, autor de um Dicionário Escolar Afro-Brasileiro, não está interessado em distinções sociológicas, mas unicamente no cotejo das responsabilidades de “europeus” (leia-se “brancos”) e “africanos” (leia-se “negros”). O método peculiar o leva a concluir que os primeiros “corromperam” os segundos. Um relatório do Unicef, de 2004, revela a persistência do tráfico de escravos, principalmente crianças, no interior da África e entre a África e países árabes e europeus. A reconstituição ideológica da história do comércio de gente busca inspiração nos conceitos perigosos de culpa e de raça, que funcionam como chaves para abrir as portas das políticas de “reparação”. África e escravidão não são evocadas a fim de iluminar o sistema que convertia seres humanos em mercadoria, mas para ocultar as suas engrenagens e restaurar o princípio da divisão racial da humanidade. É justamente o inverso do que fizeram o revolucionário L’Ouverture e o reformador Clarkson, separados por um oceano e pela cor da pele, mas unidos em torno do princípio da igualdade.
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Entrevista:O Estado inteligente
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quinta-feira, março 22, 2007
Escravidão em branco e preto- Demétrio Magnoli
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