Entrevista:O Estado inteligente

domingo, março 18, 2007

ENTREVISTA Fernando Henrique Cardoso

'Estratégia de Lula para montar base é dá cá, toma lá'



Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República
Tucano diz que ele e Lula não conversam mais por causa do PT, mas afirma que o presidente “não é homem de generosidade”

Carlos Marchi

A estratégia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para montar sua base política vai desembocar num “dá cá, toma lá”, afirmou em entrevista ao Estado o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Ele disse ter a impressão de que, após a reeleição, Lula “perdeu a pressa”, o que o leva “a se enrolar no jogo partidário com certa bonomia”. Fernando Henrique disse não se irritar com as provocações do atual presidente e confessou: “Eu também gosto de provocá-lo, sem ressentimentos nem agressões pessoais.”

A sério, opinou que os dois deveriam conversar com mais assiduidade, mas isso não ocorre por culpa de setores do PT. Arrematou: “O presidente não é um homem de generosidades, nem mesmo de amabilidades com quem possa parecer competidor.”

Fernando Henrique revelou que gostaria de ter antecipado as mudanças no regime cambial e avançado mais na reforma política. Ele está em campanha aberta pela adoção do voto distrital como primeiro passo para a reforma política. Para o ex-presidente, é o mecanismo que mais põe em xeque o sistema atual, ataca as acomodações partidárias e aproxima o eleitor e o eleito. Mas só admite o voto distrital misto se for flexibilizado o sistema de listas fechadas, criticado por fortalecer as oligarquias partidárias.

Por que o sr. defende o voto distrital como ponto de partida da reforma política?

Porque ele representa o mecanismo que mais diretamente põe em xeque o sistema atual. Quebra a espinha dorsal das acomodações partidárias e leva à maior proximidade entre o eleitor e o eleito. No sistema atual, o eleitor paulista, por exemplo, escolhe um entre mais de mil candidatos, que pescam o voto em um eleitorado de mais de 25 milhões de pessoas. No voto distrital, cada partido só pode apresentar um candidato por distrito. O eleitor escolhe entre poucos candidatos e conhecerá melhor a pessoa em quem vota.

O voto distrital não paroquializa a política?

Nós já temos um sistema paroquial funcionando. Pior, um misto entre paroquialismo e lobbies, pois boa parte dos deputados se elege em função de máquinas - partidárias, de prefeituras, de igrejas, de sindicatos, de empresas -, muito mais do que do apoio direto dos cidadãos. Com o voto distrital, embora a representação de interesses possa continuar - e ela pode ser legítima -, o candidato terá de se dirigir aos eleitores. No passado, o voto distrital puro teria conseqüências negativas, por causa do paroquialismo e das chefias locais. Hoje, com a mídia ativa, a diferença entre o local e o nacional diminuiu muito.

Por que não o voto distrital misto?

O principal motivo por que alguns preferem o voto distrital misto - no qual parte dos candidatos é apresentada numa lista ordenada pelos partidos e o voto é proporcional (o partido que recebe 20% dos votos fica com 20% das cadeiras, por exemplo) - é, precisamente, a de resguardar as minorias. É até possível discutir se vale mais a pena tal sistema, desde que as listas não sejam fechadas, isto é, não sejam feitas pelas oligarquias dirigentes dos partidos. Haveria que dar ao eleitor a liberdade de reordenar a lista pela escolha direta do candidato. Mas a relação hoje existente entre mídia e cidadãos garante maior circulação de informações. Mesmo no sistema distrital puro os partidos terão candidatos que defendam posições de vanguarda, como os verdes ou defensores da igualdade de direitos para mulheres e negros. Caso contrário, correm o risco de perder as eleições para candidatos dos partidos que o fizerem.

O sr. propõe o engajamento da população no debate, como aconteceu nas Diretas-Já. Não é um tema muito árido para as massas?

O povo está cansado de corrupção, de impunidade e do custo das campanhas eleitorais. Haveria que mostrar aos eleitores como e por que o voto distrital ajuda a combater esses males. Eu propus também que se começasse pelas eleições de vereadores, nas quais é mais fácil para o eleitor perceber que no atual sistema ele pode não ter representante de seu bairro ou cidade e, portanto, não teria de quem cobrar eventuais desmandos praticados.

Muita gente defende o sistema de voto por listas. Ele não fortalece as oligarquias partidárias?

Sem dúvida, o voto por listas fortalece as oligarquias partidárias. De qualquer modo, teria a vantagem de ser um primeiro passo para quebrar o atual sistema. Mas há modos de amenizar o controle dos chefes partidários. Na Bélgica, por exemplo, o partido apresenta as listas, mas o eleitor pode mudar a ordem, assinalando não apenas que vota na legenda, mas em que deputado.

O presidente Lula busca formar sua base de apoio no PMDB e atraindo partidos fisiológicos. Onde desemboca essa estratégia?

A estratégia de obter uma base “superônibus”, sem uma agenda legislativa definida e sem apoio da sociedade, desemboca na mesmice de sempre: o dá cá, toma lá.

O sr. disse que o programa Bolsa-Família é uma concessão do ‘pai da pátria’ e que, por ele, o povo paga com o voto. Como enfrentar essa formidável máquina com 23 milhões de eleitores listados?

Houve uma deturpação dos programas que eu chamava, com duplo sentido, de rede de proteção social. No meu governo, havia a insistência em dois pontos-chave: primeiro, que os programas eram um direito dos cidadãos; segundo, que eles buscavam a promoção social. No atual governo, todos os programas do meu governo foram fundidos num só, o Bolsa Família, e os controles foram reduzidos. Pior ainda, a propaganda oficial direcionou uma ação que deveria consolidar os direitos da cidadania a um gesto político do presidente. Ele é quem “dá” o auxílio. É difícil, mas não impossível, mostrar à sociedade que o personalismo político é um atraso antidemocrático.

Já se vão quase três meses da posse e só agora Lula conclui a reforma do ministério. Reforma ministerial é assim mesmo, tão difícil?

Tenho a impressão de que o presidente, com a vitória no segundo turno, perdeu a pressa em geral. Isso, somado à preocupação de obter uma superbase, leva-o a se enrolar no jogo partidário com certa bonomia. Mesmo porque a administração segue na rotina, e a economia vai adiante embasada nas reformas do passado e nos ventos do boom econômico mundial.

O presidente insiste em comparações do governo dele com o seu, naturalmente quando lhe são favoráveis. O senhor resiste à tentação de fazer o mesmo?

Eu acho que os governos passam. O que se diz no calor da hora com comparações arbitrárias favoráveis a este ou ao governo anterior conta pouco. O que realmente importa é criar situações que abram espaços novos e melhores para o Brasil. Cada governo enfrenta desafios diferentes, mais ainda nos dias que correm em que os fatores globais pesam tanto. Acho mais prudente deixar a tarefa das comparações para os historiadores no futuro.

Dizem que Lula se chateia quando o senhor o critica. O senhor se irrita quando ele o provoca?

Eu não me aborreço com as provocações do presidente. Já não me aborrecia antes, quando ele criticava acidamente as políticas econômico-financeiras de meu governo - que ele agora segue. Por que haveria de me preocupar com as provocações? Elas fazem parte do jogo político. Eu também gosto de provocá-lo, sem ressentimento nem agressões pessoais.

Não seria de esperar que os dois presidentes reeleitos, que vieram de uma matriz política tão próxima - o senhor chegou a cogitar de se filiar ao PT -, conversassem mais? Por que isso não tem ocorrido?

Isso deveria ter acontecido desde 2003. Infelizmente, o eleitoralismo de setores do PT fez com que o PSDB fosse definido, mais do que adversário, como inimigo, e eu, como símbolo dessa situação de animosidade. O presidente não é homem de generosidade, nem mesmo de amabilidade, com quem possa parecer seu competidor.

Em seus dois governos, o que deveria ter feito e não fez?

Poderia, como disse em outras ocasiões, ter antecipado as mudanças de regime cambial. Poderia, eventualmente, ter avançado mais nas reformas, inclusive na política. Enfim, poderia ter feito mais e melhor. Só que é mais fácil ser engenheiro de obras feitas do que fazê-las, principalmente quando se trata de mudar o rumo das coisas, como tentei fazer nos meus dois mandatos, com graus variáveis de sucessos e desilusões, mas com avanços que me parecem inegáveis e que, espero, sirvam de base para avanços ainda maiores.

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