Mentira só não faz crescer a economia. Muitos motivos podem ser listados para a mediocridade do PIB brasileiro, confirmada agora mais uma vez com a divulgação pelo IBGE de que o índice foi de 2,9% no ano passado. No entanto, por trás de todos eles, está não apenas a incompetência do governo, mas também a credulidade da sociedade que se contenta com pouco e se ilude com muito. O desconhecimento do Brasil sobre seu passado e seu presente, que alimenta e é alimentado por sua auto-imagem de “país do futuro”, tem ligação direta com a incapacidade geral de determinar rumos concretos, com ou sem mito.
Tal mediocridade não é exclusiva do governo Lula. Desde os anos 80, com a derrocada de um regime cujo ímpeto faraônico deixou ruínas que até agora não se varreram por inteiro, o Brasil caminha a passos curtos. Com o governo Fernando Henrique Cardoso, vendeu-se a miragem de que o fim da inflação e o começo da desestatização (eufemismo tucano para privatização) estavam inaugurando a modernidade brasileira, essa catedral de Niemeyer que nunca termina de ser inaugurada. Enquanto os “socialistas democráticos” vituperavam, os tecnocratas da vez diziam que os fundamentos econômicos eram sólidos e, logo, o crescimento estava logo ali, na próxima esquina.
Mas o vendaval das crises financeiras depois da explosão da bolha digital, no fim da década passada, entraram no caminho. O governo FHC não foi nem neoliberal - pois só fez aumentar o peso do Estado sobre a canga da sociedade - nem social-democrata, pois não converteu arrecadação crescente em benefício social de médio e longo prazo. Para chegar ao poder, Lula e o PT decidiram assumir a mesma indefinição e passaram a desdizer quase tudo que haviam dito durante duas décadas: se criticaram o Plano Real, agora eram capazes de desaquecer a economia ao máximo em nome do combate à inflação; se foram contra as privatizações de telefonia e siderurgia e o agronegócio baseado em latifúndios, agora não se faziam de rogados ao comemorar o salto das exportações; e assim por diante, numa mímica de humilhar Marcel Marceau.
Há diferenças, claro. Já contabilizadas aquelas privatizações, a consciência petista podia ter uma fração de tranqüilidade ao discursar contra a “venda do patrimônio nacional”. A ênfase podia migrar, então, para a distribuição de renda; programas sociais do antecessor foram unificados e expandidos, ainda que o governo saiba tão pouco sobre as carências da população e sobre os destinos das verbas. E, acima de tudo, havia Lula e, com ele, a mais eficaz das mentiras a propagar: a de que um governante de origem pobre - embora de classe média alta há muitos e muitos anos - seria mais indicado para sanar as mazelas sociais. Nem mesmo denúncias de corrupção em salas adjuntas seriam suficientes para demolir a encarnação perfeita do “homem cordial” brasileiro, o compósito de JK e Getúlio para o século 21.
Acontece que a realidade, rebelde como só ela, insiste em ser mais complexa do que os sonhos de estabilidade, e nem mesmo um Amazonas de enganos é capaz de encobrir a distância que vai entre fato e mito. Além da corrupção e violência generalizadas, que não saem do cotidiano da mídia, o espetáculo do crescimento é sempre adiado até nova promessa. Muito jogo de cena é feito: viagens pelo Terceiro Mundo, discursos para o Primeiro Mundo, pacotes, operações e propagandas embrulham a “esperança”; e tanto o mercado, que não tremeu nem um minuto com a perspectiva da reeleição, como as classes baixas e boa parte da classe média acreditam ou fingem acreditar. Porque pouco se faz.
Como o antecessor, o governo Lula aumentou impostos, superestimou juros, gastou mal o dinheiro público, não mexeu no conteúdo e no gargalo do sistema educacional, não fez acordos comerciais de porte, não fez de verdade as reformas política, previdenciária e tributária. Como queriam que o Brasil crescesse? O emprego continua em torno de 10% e a renda per capita subiu apenas 1,4%, mas dados de institutos como Caged e Ipea são alardeados por trombetas. E a conjuntura internacional, um verão durante todo o primeiro mandato de Lula, agora tem nuvens negras no horizonte. A nau brasileira, como sempre, segue passiva, avessa a exigências (“Ah, mas não é nenhuma catástrofe”), de dedos cruzados e bêbada de ilusões.
CADERNOS DO CINEMA (1)
Fui ver Borat na noite da sexta retrasada, numa sala de shopping. Eu esperava um filme mais engraçado, mas a platéia parecia tão predisposta a gargalhadas que bastou ele aparecer de maiô decotado verde para que elas desatassem em cadeia, chegando ao máximo de decibéis nas cenas mais escatológicas (em que os atores tornam literais as agressões verbais do tipo “kiss my ass”). Deve ser por isso, ao menos em parte, que o filme é descrito pelos jornais como “politicamente incorreto”, feito de piadas contra judeus, negros ou gays. Mas não é. O objetivo é tirar sarro da mentalidade americana, inclusive da politicamente correta. E Sacha Baron Cohen consegue.
Há esquetes muito engraçados, desde que Borat, o jornalista do Casaquistão, desembarca em Nova York e conhece a proverbial indiferença de seus habitantes. Mas é quando ele parte para uma jornada para a costa oeste em busca da siliconada Pamela Anderson que o filme passa a ter seus melhores momentos. Na igreja pentecostal, por exemplo, basta uma boa edição para mostrar a bizarrice daqueles “êxtases”. E no jantar em que a anfitriã faz de tudo para “superar as barreiras culturais”, segundo a melhor correção política, sua máscara cai por terra quando Borat apresenta sua “convidada”. Todos os “ismos” da vida americana e não só americana - machismo, nacionalismo, puritanismo - são ironizados justamente por sua vontade de rotular os outros. Pena que, entre uma risada e outra, muitos espectadores se esqueçam de pensar.
CADERNOS DO CINEMA (2)
Acho Os Infiltrados um bom filme, apesar de alguns problemas, como a inconsistência do relacionamento romântico e a inverossimilhança dos usos de celulares. O jogo de espelhos entre policiais e bandidos é tema velho, ainda que tão bem dirigido por Scorsese, cujo Os Bons Companheiros é mais rico como estudo dos códigos da violência. Mas parece claro que ele foi premiado pelo conjunto da obra - Os Bons Companheiros não foi premiado, assim como Touro Indomável, e Táxi Driver nem sequer indicado - num ano em que havia concorrente melhor “ma non troppo”, como Cartas de Iwo Jima, de um Eastwood já contemplado com dois Oscars, o último deles há apenas dois anos.
De resto, a premiação não teve grandes novidades: Helen Mirren e Forest Whitaker eram vencedores esperados, dentro da antiga tradição das atuações “miméticas”, em que o ator assume como médium a aparência e o jeito de alguém conhecido.
DE LA MUSIQUE (1)
De Yo-Yo Ma, o violoncelista sino-americano que volta ao Brasil em junho, acaba de sair outro CD excelente, Apassionato, que vai de Vivaldi a Jacob do Bandolim (a linda Doce de Coco, com Paquito D’Rivera e Romero Lubambo), passando por Brahms (com Isaac Stern e Claudio Abbado) e Piazzolla, por Gershwin e Morricone (de Cinema Paradiso e A Missão), e da Finlândia à China - tudo tocado com a precisão e a delicadeza de sempre.
DE LA MUSIQUE (2)
Leio que Not too Late, CD de Norah Jones, vendeu 1 milhão de cópias em poucas semanas. A melhor faixa é Be My Somebody, e o CD todo é caprichado nos arranjos, principalmente quando assume essa pegada de balada country. Mas, convenhamos, ela é água-com-açúcar, “light” até perder o sabor, e que classifiquem sua música de jazz é uma piada.
POR QUE NÃO ME UFANO
Apesar de todo seu pragmatismo e materialismo, os EUA são um país bem menos secular do que se imagina, como Bush está aí para não nos deixar esquecer. Mas o que dizer das crendices brasileiras? Quando uma telenovela como Barracos da Vida, digo, Páginas da Vida tem um espírito que aparece mais do que em romance de Isabel Allende, puxando a audiência pelo pé, fica claro que não se trata apenas de exercício ficcional; muitos espectadores realmente acreditam na possibilidade. E quando as revistas semanais, como a Veja, aclamam as pílulas do frei Galvão, a ser canonizado pelo papa (e daí, se Deus mesmo é brasileiro?), percebe-se que nem a “zelite” preza a seriedade e a ciência.