Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, março 05, 2007

Anestesia- Denis Lerrer Rosenfield




O Estado de S. Paulo
5/3/2007

A opinião pública, salvo sobressaltos, está anestesiada.
O novo governo, aparentemente tomado por uma grave doença, apresenta sinais visíveis de envelhecimento precoce. A tão aguardada reforma ministerial parece ter sido guardada num dos tantos escaninhos do Palácio do Planalto, provavelmente naquele que contempla uma divisão da "coisa pública", no caso, a coisa de todos nós, então reduzida a uma troca de cargos, prebendas, empregos e tantas outras coisas, inacessíveis aos cidadãos, simples cidadãos, deste país. Em vez do bem comum, observamos em ação políticos cujo único propósito é o bem particular, deles. O mais surpreendente, no entanto, é que um processo de tal tipo não cause nenhuma comoção, como se o desprezo pela política tivesse sido ampliado para o descuido total com a República.
O espetáculo da reforma ministerial chega a ser deprimente, mesmo para os especialistas. Cargos são barganhados; parlamentares mudam de partido com o único proveito - pessoal - de pertencerem à dita "base governamental"; ministros e ministeriáveis se agarram a postos reais ou virtuais como se nada mais importasse; o presidente joga com tudo e todos e, sobretudo, com a Nação, como se isso fosse o máximo que poderíamos almejar; porta-vozes governamentais ora dizem um coisa, ora outra, sem nenhuma preocupação elementar com o princípio de não-contradição. E, no entanto, nada acontece. As pessoas estão paralisadas, perguntando-se, perplexas: o que fazer? Produz-se, inclusive, uma lassidão na leitura dos jornais, pois a dita reforma ocupa páginas e páginas que apenas reproduzem o jogo dos atuais detentores do poder. Notícias baseadas em fontes ditas confidenciais são nada mais do que informações plantadas para desorientar os pretendentes a cargos e a opinião pública em geral. É como se natural fosse o aviltamento da República.
A disputa recente pela presidência do PMDB é mais um episódio desta lamentável história.
Além de o partido se ter praticamente vendido ao governo em nome de um inexistente programa comum, com oposicionistas históricos se curvando às diretrizes do Palácio do Planalto, Lula ainda entra na luta para escolher o novo presidente do partido. Não contente em ser presidente da República, em ser (de fato) presidente do PT, ele almeja, agora, ser presidente do PMDB por interposta pessoa.
Esse partido, o maior do País, se torna refém de orientações de outro partido, vindo a fazer parte de um jogo que só avilta a sua própria história. Herdeiro do antigo MDB, está jogando fora toda uma herança, construída na luta pela democracia e pela dignidade do Poder Legislativo. Agora, aposta na submissão do Poder Legislativo ao Poder Executivo e abandona a bandeira da ética, que alguns dos seus parlamentares ainda diziam defender. Onde estão os parlamentares que tanto criticaram os deslizes éticos e os desvios dos recursos públicos, concretizados no caso Waldomiro Diniz, no mensalão, na Operação Sanguessuga, no dossiê "mal comprado" contra a oposição? Onde está a apuração das responsabilidades? Tudo desapareceu? A meta de desprestigiar o Legislativo não pára, porém, por aí. Numa atitude inusitada para quem se diz republicano, o presidente Lula propõe que os presidentes do Senado e da Câmara se reúnam com ele todas as segundasfeiras para discutirem a "pauta" parlamentar.
Ou seja, a pauta de um Poder seria discutida com a de outro, que não cessa, aliás, de usar medidas provisórias para obstaculizar qualquer iniciativa oriunda propriamente do Congresso. A submissão seria total. A situação é tão escandalosa que chega a ferir um dos pilares do regime republicano, como o de separação e equilíbrio dos Poderes, em que, no caso, o que deveria fiscalizar as ações do Executivo, tendo a prerrogativa de propor leis, se submete a ele. E isso é feito à luz do dia, publicamente, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Suponho que o próximo passo do presidente será convidar o presidente do Supremo para discutir a pauta do Judiciário. Ato seguinte, a mesma operação seria feita com o Ministério Público, tendo como objetivo apontar concretamente quem deveria ser denunciado ou não. O círculo estaria completo e a democracia brasileira, perdida.
Não estranho a esse processo, o governo, por intermédio de um dos seus ministros, propõe, juntamente com a OAB, que plebiscitos e referendos possam ser realizados por iniciativa direta do presidente, sem passarem pela aprovação do Congresso Nacional. A medida é ardilosa, porque, neste contexto, parece surgir de uma instituição da sociedade civil, não estando maculada por um pretenso interesse governamental. O discurso, como sempre, é apresentado como sendo um aperfei

Quantas vezes foram usados instrumentos democráticos para abolir a democracia


çoamento da democracia representativa, graças a uma via direta de consulta à população. Suponho que a degradação republicana da reforma ministerial, a compra do PMDB, reproduzindo o esquema do primeiro mandato, o incentivo à "infidelidade" partidária e a pauta "Executiva" do Legislativo sejam também formas de aperfeiçoamento da democracia. O perigo maior de mais essa tentativa de curto-circuitar o Poder Legislativo pelo Poder Executivo via plebiscitos e referendos consiste em que a nova "pauta" possa viabilizar um terceiro mandato do presidente Lula. O perigo consiste em que um presidente assim plebiscitado possa vir a legislar independentemente do Congresso, consagrando-se como um líder que legisla apenas em proveito próprio. Poderá ele sempre dizer que plebiscitos e referendos são instrumentos democráticos. A História está cheia de exemplos de instrumentos democráticos que foram utilizados para abolir a própria democracia.
Uma opinião pública anestesiada e um Poder Legislativo enfraquecido tornam a sociedade uma presa fácil dos que pretendem restringir os espaços de liberdade. ?

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