Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, março 20, 2007

AUGUSTO NUNES Ivan Lessa está coberto de razão


Durou três horas a reapresentação do artista, agora no papel de representante de Alagoas naquilo que é chamado de "a mais alta Casa do Legislativo" por quem fala congressês castiço. Terminado o discurso de estréia na tribuna do Senado, abrilhantado por numerosas intervenções do coral multipartidário, Fernando Collor proporcionara aos brasileiros um espetáculo pouco edificante, mas muito pedagógico - sobretudo para os que se animam a examinar, sem lentes deformadoras, as profundezas da alma nacional.

O desempenho de Collor demonstrou que o artista quando jovem era um pouco pior. Ele agora utiliza com mais parcimônia trechos que recomendam voz embargada. Troca o pranto exagerado e inconvincente pela lágrima furtiva, pelo soluço quase represado. Já sabe reprimir esgares e arroubos que denunciam a arrogância congênita. Até já consegue, sem escorregar na canastrice, fingir que estende a supostos carrascos a mão que perdoa. Louvado o esforço do protagonista, reafirme-se que a encenação nada teve de edificante.

Com a ajuda dos aplicados figurantes, Collor reafirmou a vigência, nestes trêfegos trópicos, de usos e costumes revogados há décadas por nações politicamente civilizadas. No Brasil, por exemplo, um culpado não demora a reencarnar como vítima - sem ter purgado os muitos pecados cometidos. Os acusadores de ontem são os espectadores cúmplices de hoje. Prontos para juntar-se, amanhã, às testemunhas de defesa do pecador.

Em contrapartida, a contemplação dessa face escura do país, oferecida por um espetáculo transmitido ao vivo, na íntegra e sem cortes pela TV Senado, permitiu a multidões de nativos assimilarem lições bastante úteis. Aprenderam, por exemplo, que o escritor Ivan Lessa está coberto de razão: a cada 15 anos, o Brasil esquece o que aconteceu nos últimos 15 anos.

Na pátria dos desmemoriados, esse é prazo para a prescrição das piores lembranças. Vale para páginas singularmente sombrias da História. Vale para os períodos mais infelizes da República. O conteúdo do discurso, somado à reação amistosa de alguns senadores, ao sumiço da voz de outros, ao silêncio das ruas, à passividade do rebanho, sugere que estão também prescritos os incontáveis crimes, violências, obscenidades e outros ultrajes ao Brasil decente ocorridos durante o reinado de Fernando Collor.

O pesadelo começou em 1º de janeiro de 1990, horas depois da chegada ao poder de um homem que, nascido no Rio, fundira ainda na mocidade todos os defeitos da oligarquia gaúcha e do coronelato nordestino. Terminou formalmente em 28 de dezembro de 1992, com a renúncia de Collor.

A assinatura do documento só consumou a morte anunciada meses antes. Collor não deixou a vida política por vontade própria. Sangrava havia meses com os sucessivos escândalos apurados por uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. No dia da capitulação, o Brasil inteiro sabia que, durante dois anos, tivera na Presidência da República um aventureiro sem compromisso com valores éticos, com a lógica, com virtudes perenes, com a lei.

Na longa versão exposta no discurso de estréia, cuidadosamente revista e aperfeiçoada, Collor só cometeu alguns erros administrativos e políticos. Não deveria ter tungado a poupança dos brasileiros, exemplificou. Poderia ter sido mais clemente com os inimigos e mais generoso com os aliados, sobretudo se providos de cargos no Poder Legislativo. Talvez devesse ter sido menos indulgente com alguns auxiliares, concedeu. "Cometi equívocos", admitiu. Mas nenhum pecado grave. Nada que justificasse a perda do mandato, violência que debitou na conta do Congresso, com a serenidade aparente dos farsantes, sem que um só dos presentes se atrevesse a exumar cadáveres ainda em decomposição ou mesmo insepultos.

E a gastança na Casa da Dinda? E os casos de extorsão promovidos por Paulo César Farias, o tesoureiro do reino? E o assassinato suspeitíssimo do chefe da quadrilha federal? E a história do Fiat Elba? E a fortuna criminosamente acumulada para financiar futuras campanhas eleitorais? E a roubalheira institucionalizada? E a farsa dolarizada da Operação Uruguai? As perguntas continuam à espera de respostas verossímeis. Nenhum senador ousou fazê-las.

"O tempo é o senhor da razão", dizia a inscrição numa camiseta de Collor. O passar dos anos não absolveu o ex-presidente. Só mostrou que, de 1992 para cá, os pais da pátria de todos os partidos e governos tornaram o Brasil ainda mais cafajeste. Nenhum político pode fazer acusações sem ser convidado a justificar crimes praticados, na melhor das hipóteses, pela bandidagem de estimação.

20 / 03 / 2007

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