O Globo |
20/3/2007 |
Como exercer o quarto poder do jornalismo na democracia Domingo passado, participei de um seminário organizado pelo "Jornal da Globo" sobre nossa vida de jornalistas, esse quarto poder tão importante num país onde a crise cresce como um maremoto. No domingo, tentei abrir a alma e dizer o que penso da função crítica dos jornais e da mídia eletrônica. Falei para jovens jornalistas e perguntei a eles: Sabemos que empresas querem lucro, profissionais querem viver, comer, aparecer, sim, mas afinal o que nos move? Que grão de esperança ou romantismo treme em nossos textos? Amor à pátria, esperança de harmonia, combate ao crime e à mentira? O quê? A imprensa democrática cumpre um papel imenso, nesse vazio reflexivo em que nos meteram há quatro séculos. Temos uma população mergulhada na ignorância e no a-criticismo. A grande maioria é fácil de enganar. Vejam as multidões de vítimas de evangélicos corruptos e os milhões de votos do neocabresto moderno: os "bolsistas da família". Nunca me esqueci da formulação de Brecht, o "efeito de estranhamento", ou seja, "ver por trás do familiar o que existe de estranho, desumano". Que fatos sinistros há embaixo dos fatos que nos parecem normais? Que doença se disfarça de saúde? Isso sempre me moveu, desde o Cinema Novo até hoje. Disse a eles, portanto, que a imprensa deve ser "crítica" em primeiro lugar. E "crítica" não quer dizer "ataque" ou "denúncia" apenas, mas avaliação, busca de entendimento, que pode ir da mais amarela bile de ódio até propostas de positividade. Disse também a eles: tentemos a difícil tarefa de pensar sem ideologia. Isso. Entender os fatos sem um pré-conceito. O pensamento ideológico distorce a realidade para fazê-la caber num a priori, numa certeza anterior ao fato. Dificílimo isso, pois somos todos seres "ideológicos". Se alguma forma de ideologia quer ter (para além de esquerda ou direita, essa velha dualidade), é procurar a presença do que é humanizante ou civilizatório, o que pode aumentar a qualidade da vida pessoal e do interesse público. Como dizia Marco Aurélio (não o Garcia, nem o de Mello, claro), o imperador: "O que é bom para a abelha tem de ser bom para a colméia". Disse a eles que a denúncia pura no Brasil é muito fácil, porque há um excesso inacreditável de absurdos no dia-a-dia. Vivemos em um momento histórico em que tudo parece desabar, o que pode nos levar ao que os psiquiatras chamam de "delírio de ruína". Disse-lhes do meu medo de que a denúncia mecânica, o trágico espetacular, o horror como rotina pode ser até mais lucrativo para quem denuncia do que para quem o sofre. Acho que o catastrofismo beneficia o atraso e os reacionários, aqueles que vivem do erro nacional, dos buracos das instituições, da fraqueza de nossa formação. Falei que somos todos parte do "grande erro" e que devemos nos incluir no que criticamos. Há certos articulistas que se salvam do abismo, que falam como se não fizessem parte do país. Vivemos um momento perigosíssimo, com as velhas doenças brasileiras se agravando em ritmo veloz, diante da impotência dos poderes públicos. Os fatos estão cada vez mais além das interpretações, os crimes ocorrem numa velocidade de jatos e as formas de combatê-los se arrastam. Os criminosos da violência ou da corrupção já perceberam essa lentidão impotente e estão curtindo a anomia progressiva com o descaro de se saberem impunes. Essa espantosa crise institucional pode ameaçar a democracia, tão mal entendida no país, como falou Sergio Buarque. Há o perigo de contaminação pela estupidez populista dos países liderados pelo fascista Chavez, já que nada se resolve. Também falei que ficar na dualidade antiga e burra de esquerda x direita não esgota a análise dos fatos. O que nos paralisa não é a malignidade de grupos, mas velhos vícios endógenos, velhos vícios ibéricos que nos incluem e que nos impedem de progredir. Lembrei-lhes que nossas doenças são a corrupção endêmica, o burocratismo paralisante, o clientelismo cordial, o personalismo ridículo, o salvacionismo messiânico, o arcaísmo das leis, a ausência de noção de "república". O jornalismo tem de ser uma espécie de psicanálise de nossos vícios e não a mera procura de culpados. Também disse que, no seio do romantismo revolucionário dos anos 60, havia uma "finalidade" a se atingir , uma utopia que substituía o presente e o "possível" pelo imaginário. Esse pensamento mágico destrói a administração da vida real em nome de um futuro que não chega nunca. Hoje, temos de aceitar a impossibilidade de uma harmonia final. Nunca teremos um país perfeito, resolvido. Nunca chegaremos "lá". Um dos "bons" (sic) legados da ditadura é que ela mostrou que o Brasil era muito mais complexo do que se pensava. O fracasso da esquerda em 64 e, depois, o suicídio da guerra urbana de 69 em diante mostraram o absurdo do voluntarismo burro da velha esquerda. Houve um real espasmo de democracia nos anos seguintes a 85, mesmo com as tragédias que começaram com a morte de Tancredo até a hiperinflação dos anos 80 até 94. Agora, estamos em uma fase em que o perigo é o eterno pêndulo entre liberalismo e Estado centralizador. Temos uma atávica fixação no Estado salvador. A complexidade lenta da democracia está a nos trazer saudades do simplismo velho de guerra. Na primeira fase da era-Lula, o petismo "corrupto-bolchevista" tentou tomar o Estado mas, espantosamente, fomos salvos pelo Jefferson, com sua legitimidade de corrupto confesso. Agora, corremos o perigo do deslumbramento messiânico do Lula, achando que é um santo milagreiro. O perigo atual é o regressismo à burrice de quatro séculos. Aos poucos, o rabo do lagarto do atraso se recompõe. Com um leve sabor de sacrilégio, disse-lhes que só um "choque de capitalismo" poderá destruir o estamento patrimonialista que nos anestesia. Não adianta anunciar catástrofes. É preciso ensinar a população a se defender do Estado vampírico, do "Leviatã anêmico", como bem definiu Eduardo Gianetti da Fonseca. O resto - disse-lhes - é papo morto. |
Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, março 20, 2007
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