Os conselhos de um sábio americano
para o Iraque e o que seus argumentos
representam para o Brasil
Feliz do país que pode revigorar-se nessa saudável, criativa e depuradora atividade que é a guerra civil. Não foi com essas palavras que o americano Edward Luttwak, reputado especialista em questões militares, se expressou, em entrevista publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo (na edição do domingo 12), mas elas não estão longe de lhe traduzir o pensamento. O repórter Lourival Sant'Anna pergunta, no ponto mais interessante da entrevista, se a retirada americana do Iraque não mergulhará o país na guerra civil. Luttwak responde: "Guerras civis são boas para separar populações e estabelecer a paz civil. Os americanos e os britânicos tiveram suas guerras civis. Agora, os iraquianos vão ter a sua".
Obrigado, doutor Luttwak, pela franqueza. O senhor é a favor de os Estados Unidos caírem fora quanto antes do melê iraquiano, e já há algum tempo, para combater o principal argumento contrário, vem enaltecendo as virtudes da guerra civil. Um artigo recente de sua autoria no inglês Daily Telegraph tinha um título que já dizia tudo: "Guerra civil: a única maneira de trazer a paz ao Iraque". Num trabalho anterior, o senhor havia condenado a persistência americana em entregar-se a "fúteis combates contra facções que, em vez disso, deveriam estar se confrontando umas contra as outras".
Luttwak lembra o Doutor Fantástico, aquele que, segundo o subtítulo do famoso clássico do cinema, "deixou de se preocupar e passou a amar a bomba". Os acadêmicos que, como ele, escolheram o caminho de passar a vida pensando em guerras sempre têm um quê de Doutor Fantástico. Eles escrevem livros e prestam serviços a órgãos governamentais recomendando um bombardeio aqui, uma invasão ali, ou, como agora é o caso, uma guerra civil acolá. Mas não sejamos assim tão óbvios. Tiremos o Doutor Fantástico do caminho. A argumentação de Luttwak é na verdade preciosa – primeiro pelo que revela da situação dos americanos no Iraque, e segundo porque toca num mito que diz respeito inclusive ao Brasil.
Quanto ao primeiro ponto, o que Luttwak revela é o estado irremediável da posição dos EUA no Iraque. Para começar, falar em "risco" de guerra civil soa a piada. Se já não é guerra civil o que se passa por lá, é o quê? A questão é tirar os americanos do meio. Para evitar a humilhação de uma retirada total, a proposta – de Luttwak e de um crescente número de pessoas em Washington – é retirar-se dos centros habitados e recolher-se a posições no deserto, a fim de manter alguma presença inibidora. Eis o grande achado: os americanos passariam da posição de partícipes para a de espectadores da guerra civil, em lugares tão privilegiados como os dos romanos ilustres no Coliseu, para ver os gladiadores se trucidar. Não é que a guerra civil seja recomendável, como quer Luttwak. Ela foi, desde sempre, inevitável. A alternativa seria chamar Saddam Hussein de volta para reenquadrar o país, mas isso é pouco recomendável, dada a reputação desse cavalheiro. O que no fundo Luttwak está dizendo é que, se a guerra civil é inevitável, então relaxemos, gozemos e, como o Doutor Fantástico (vá lá: é a última vez que invocamos tão deplorável personagem), aprendamos a amá-la.
O segundo ponto que ressalta das posições de Luttwak é o argumento – ou melhor, o mito – da guerra civil como força revitalizadora das nações. A tese nos é familiar. A suposta "conciliação" que teria caracterizado a história do Brasil seria um dos males que danaram o país. Se ao menos nos tivéssemos trucidado uns aos outros, em certos momentos, se nos tivéssemos arrancado a pele, mordido as mandíbulas e torcido os pescoços... Não faltaram pequenas guerras, na história brasileira, e a violência nos acompanha desde sempre. Mas faltou aquele enfrentamento amplo, geral, definitivo e definidor – às vezes chamado de revolução – que premia os povos com uma nova aurora.
Assim corre o mito. Contra ele, para ficar nos casos citados por Luttwak, ainda está para ser provado – ou melhor, nunca será provado – que os Estados Unidos e a Inglaterra são o que são por causa das respectivas guerras civis. Se a guerra civil fosse realmente tudo isso de bom, a África seria o mais feliz dos continentes. Agora mesmo transcorre uma no Sudão, envolvendo a região de Darfur. Pela teoria de Luttwak, é de esperar que do conflito saia um Sudão mais saudável, com as populações separadas e a paz civil instaurada. Ocorre que esta é a terceira guerra civil no Sudão, e nada de esse impenitente país deixar-se purificar pelo sangue derramado. Nada de abraçar a trilha de justiça e de progresso aberta pela luta fratricida. Desculpe, doutor Luttwak, o senhor é muito instruído e é muita pretensão querer ensinar-lhe qualquer coisa, mas a única certeza com que acena uma guerra civil é a própria guerra civil. Ou seja: a matança, a doença, a invalidez, a viuvez e a orfandade. Se um país sai dela mais forte e no bom rumo é questão aberta a todas as apostas e todos os acasos.