"Só uma interpretação exorbitante
e maliciosa pode considerar a ortotanásia
uma defesa da morte, um tributo ao
homicídio, um convite à omissão assassina"
Na terra do carimbo, do formalismo legal, da chicana jurídica, não se poderia esperar uma coisa diferente: a aceitação da ortotanásia, procedimento que consiste na suspensão de tratamentos médicos capazes de prolongar a vida de um doente incurável, já está sob ameaça – dos formalistas, é claro. Nesta semana, o procurador Wellington de Oliveira, de Brasília, vai despachar uma "recomendação" ao Conselho Federal de Medicina para que revogue a resolução que adotou recentemente na qual aprova a realização da ortotanásia em pacientes terminais. "Acho que vou dar prazo de cinco dias", diz o procurador. Se o CFM revogar a decisão, assunto encerrado. Se não, o procurador vai recorrer à Justiça. "A resolução viola a legislação brasileira", resume ele.
Diferentemente da eutanásia, que é a prática de provocar a morte do paciente terminal, a ortotanásia apenas suspende tratamentos e, com isso, deixa a vida (e a doença) correr seu curso livremente. É uma forma de evitar que vítimas de doenças incuráveis, em estado irreversível, sejam submetidas a tratamentos dolorosos e inúteis, dando-lhes o direito de não prolongar sua agonia. A resolução do CFM é profundamente generosa. Só uma interpretação exorbitante e maliciosa pode considerá-la uma defesa da morte, um tributo ao homicídio, um convite à omissão assassina. A resolução diz apenas que os médicos consideram eticamente admissível dar aos seus pacientes terminais, incuráveis, o direito de humanizar um pouco a própria morte e de evitar dores excruciantes, inúteis.
A legislação brasileira não prevê a ortotanásia. Portanto, um médico que a faça, mesmo que devidamente autorizado pelo paciente ou por seus familiares, está sujeito a sofrer sanções da lei. E é aí que entram os formalistas, como o procurador de Brasília e seu prazo de "cinco dias". O Código Penal brasileiro não prevê a ortotanásia porque é uma peça de museu, em vigor desde os anos 40 do século passado. De lá para cá, houve um tremendo avanço da tecnologia e do conhecimento médico. A vida mudou. A morte mudou. As pessoas passaram a ter uma oportunidade antes inexistente: a de escolher até que ponto vale ou não a pena ser mantidas vivas.
Os sinais dessa evolução estão por toda a parte. Estão entre os médicos brasileiros que, reunidos na sua entidade de classe, decidiram que, diante do incremento fenomenal da medicina, a ortotanásia é aceitável. Estão no Congresso Nacional, no qual se debate a reforma do velho Código Penal e onde já existe uma proposta prevendo a legalização explícita da ortotanásia. Até a CNBB, que reúne os bispos católicos, mandou dizer que concorda com a resolução em favor da ortotanásia.
Só a turma do formalismo legal parece fazer questão de congelar a realidade na base da carimbada. Em vez de contemplarem os avanços da vida e da morte, os formalistas se aferram à burocracia e à lei – uma lei velha, descolada da realidade e que, mais importante de tudo, está prestes a ser reformada. Como burocratas da morte, os formalistas estão querendo suprimir dos brasileiros o direito de morrer com alguma dignidade. O direito de não ser transformados, sobre uma cama de hospital, em prisioneiros da vida.