Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 04, 2006

Obra Jornalística, de Gabriel García Márquez

No lado esquerdo do peito

O jornalismo amigo de Gabriel García Márquez
é simpático demais para dizer a verdade


Jerônimo Teixeira

Albert Gea/Reuters
Gabriel García Márquez: faltam cachorros em Moscou

EXCLUSIVO ON-LINE
Trecho de Crônicas

Uma mulher de Moscou perguntou a Gabriel García Márquez o que mais lhe desagradava na União Soviética. Havia poucos dias no país, o jornalista colombiano estranhara a ausência de vira-latas nas ruas da capital. E foi o que respondeu: "Parece-me terrível que tenham comido todos os cachorros". Os russos que o cercavam levaram a boutade a sério: "É uma calúnia da imprensa capitalista", respondeu um deles. O episódio – ocorrido em 1957, quatro anos depois da morte de Stalin e dez antes de Cem Anos de Solidão, romance que consagraria García Márquez como um dos maiores escritores da América Latina – é exemplar das melhores qualidades da Obra Jornalística do autor, que chega às livrarias nesta semana, em cinco volumes, pela editora Record. O mestre do chamado "realismo mágico" tem um olhar acurado para os fatos mais comezinhos e uma habilidade para exagerar e deformar esses detalhes até os limites do absurdo. De outro lado, a anedota ilustra as deficiências do repórter. É de perguntar se, em um Estado policial como era a União Soviética, caberia brincar diante da pergunta angustiada da pobre moscovita. As gracinhas do escritor-jornalista fazem entradas indevidas ali onde era o momento de apresentar o espírito crítico. E esse é um problema tanto mais grave nos textos que tratam do comunismo em versão tropical: García Márquez, como se sabe, é amigão do peito do ditador cubano Fidel Castro.

Nobel de Literatura de 1982, García Márquez, hoje com 78 anos, sempre deu ao jornalismo – ao qual se dedica profissionalmente desde os anos 50 – a mesma importância que a seus contos e romances. Mas a reunião de Obra Jornalística em uma avultada (e onerosa) coleção só vem demonstrar que, ao contrário do que alguns imaginam, o escritor não tem a mínima consistência como "pensador de esquerda". García Márquez parece pronto a simpatizar com qualquer tirano que o festeje em sua corte – e sua "teoria política" se resume a essas caprichosas simpatias. Além de Fidel Castro, o ditador panamenho Omar Torrijos também esteve entre os amigos do autor. E embora Gabo, como é conhecido, seja um pouco mais crítico em relação ao cinzento comunismo do Leste Europeu, ao assistir em 1957 a um discurso do premiê húngaro János Kádár – colocado no poder pela força dos tanques, depois de uma revolta contra o jugo soviético –, chegou a acreditar que aquele patético títere de Moscou no fundo tinha boas intenções. Quando a escritora americana Susan Sontag o criticou por seu silêncio diante dos fuzilamentos em Cuba, em 2003, o autor de O Outono do Patriarca declarou ser contra a pena de morte – mas, insensível à contradição, manteve seu apoio a Fidel Castro. Princípios são, afinal, impessoais demais para um caloroso representante da "latino-americanidade".

O quinto volume da Obra Jornalística, Crônicas (1961-1984) (tradução de Léo Schlafman; 770 páginas; 82,90 reais), é o mais interessante, com 173 textos curtos e variados – os temas vão da morte de Ernest Hemingway ao medo de avião. Os demais seguem uma divisão cronológica: Textos Caribenhos (1948-1952) (tradução de Joel Silveira; 868 páginas; 82,90 reais), Textos Andinos (1954-1955) (tradução de Remy Gorga, filho, e Léo Schlafman; 924 páginas; 82,90 reais), Da Europa e da América (1955-1960) (tradução de Léo Schlafman; 840 páginas; 82,90 reais) e Reportagens Políticas (1974-1995) (tradução de Léo Schlafman; 294 páginas; 39,90 reais). Os comentários de cinema, numerosos em Textos Andinos, são os mais decepcionantes, escritos em um estilo incolor que em nada lembra a prosa barroca do autor. As reportagens políticas, ao contrário, são de um proselitismo apaixonado, ao qual não falta um toque do sentimental melaço caribenho. Não basta denunciar o assassinato de Salvador Allende pelos militares golpistas: é preciso lembrar que o presidente do Chile amava as flores e os cachorros (eles de novo). No relato sobre a participação de Cuba na guerra de independência de Angola, o suposto heroísmo dos cubanos é cantado com efusão lírica (e a luta de Che Guevara no Congo, lembrada nos diários do próprio guerrilheiro como uma fragorosa derrota, é convertida em vitória na reportagem ufanista do escritor colombiano). García Márquez sugere que o próprio Fidel Castro, ao se despedir da soldadesca que rumava para a África em precários navios cargueiros, teve de reprimir um "recôndito sentimento de inveja" por não poder participar de mais essa guerrilha. Há outros episódios curiosos envolvendo o ditador cubano, como o seu encontro com o escritor inglês Graham Greene, promovido e testemunhado por García Márquez. Castro ficou impressionado em saber que Greene, na juventude, havia brincado de roleta-russa quatro vezes com um revólver. "De acordo com o cálculo das probabilidades você deveria estar morto", sentenciou Castro (que, como é costumeiro entre os "materialistas dialéticos", se confundiu na matemática).

No fim dos anos 70, García Márquez anunciou uma "greve" de textos literários: enquanto o ditador chileno Augusto Pinochet estivesse no poder, só faria jornalismo (felizmente, não cumpriu a palavra: um de seus melhores romances, O Amor nos Tempos do Cólera, é de 1985, cinco anos antes da queda de Pinochet). A Obra Jornalística traz, sim, qualidades que se convencionou chamar de literárias – o estilo exuberante e até mesmo a fantasia tão próprios do autor. Mas é como ficcionista que García Márquez vai ficar. Seus textos jornalísticos são coisa menor. Às vezes constrangedoramente menor.

Poesia social

"Sindicato de Ladrões é mais um drama psicológico do que social, embora esse mestre do cinema que é Elia Kazan tenha sabido dar um jeito para não menosprezar, em uma linha, a crua moldura social em que se desenrola e o faz mais poético no contraste."

Trecho de crítica de cinema de Gabriel García Márquez

Tragédia burguesa

The New York Times

"Amava a vida, amava as flores e os cachorros. O destino lhe concedeu a trágica grandeza de morrer defendendo o espantalho anacrônico do direito burguês."

Gabriel García Márquez, sobre o presidente chileno
Salvador Allende, deposto por um golpe militar em 1973

Tirano atlético

Jose Goitia/AP

"Fidel Castro considera a educação física uma das chaves da vida. Faz várias horas de exercício todos os dias, com a mesma proporção descomunal de tudo o que empreende, e aconselha regime semelhante aos amigos. Suas condições físicas são excepcionais."

Gabriel García Márquez, em uma crônica de 1983,
comentando a boa forma de seu amigão ditador

AFP


Semente revolucionária

"Che Guevara permaneceu no Congo de abril até dezembro de 1965. Não só treinava guerrilheiros mas os dirigia e lutava juntamente com eles. (...) Aquela passagem fugaz e anônima de Che Guevara pela África deixou plantada uma semente que ninguém erradicaria."

De uma reportagem sobre a intervenção cubana na África








Leia trecho do livro Crônicas,
de Gabriel García Márquez

Um homem morreu de morte natural

Desta vez parece ser verdade: Ernest Hemingway morreu. A notícia como- veu, em lugares opostos e distantes do mundo, os seus garçons de café, seus guias de caçadas, seus aprendizes de toureiro, seus motoristas de tá- xi, uns tantos pugilistas decadentes e algum pistoleiro aposentado.

Enquanto isto, entre os habitantes de Ketchum, Idaho, a morte do bom vizinho foi apenas um doloroso incidente local. O corpo permaneceu seis dias na câmara ardente, não para que prestassem honras militares, mas à espera de alguém que estava caçando leões na África. O corpo não ficará exposto às aves de rapina, junto aos restos de um leopardo congelado no cume da uma montanha, mas repousará tranqüilamente num desses cemitérios excessivamente higiênicos dos Estados Unidos, rodeado de corpos amigos. Estas circunstâncias, que tanto se parecem com a vida real, obrigam a acreditar que desta vez Hemingway morreu de verdade, na terceira tentativa.

Cinco anos atrás, quando sofreu um acidente na África, a morte não podia ser verdadeira. Os grupos de resgate o encontraram alegre e semi-embriagado, numa clareira da selva, a pouca distância do local onde vagueava uma família de elefantes. A própria obra de Hemingway, cujos heróis não tinham direito de morrer antes de sofrer durante certo tempo a amargura da vitória, desqualificara de antemão aquele tipo de morte, mais própria do cinema do que da vida.

Em compensação, agora, o escritor de 62 anos, que na última primavera esteve duas vezes no hospital tratando uma doença da velhice, foi encontrado morto em sua casa com a cabeça destroçada por uma bala de espingarda de caça. A favor da hipótese de suicídio há um argumento técnico: sua experiência no manejo das armas afasta a possibilidade de acidente. Contra, há um único argumento literário: Hemingway não parecia pertencer à raça dos homens que se suicidam. Em seus contos e romances, o suicídio era uma covardia, e seus personagens eram heróicos apenas em função da temeridade e coragem física. Mas de qualquer maneira o enigma da morte de Hemingway é puramente circunstancial, porque desta vez as coisas ocorreram como devem ser: o escritor morreu como o mais comum de seus personagens, e principalmente em relação aos outros personagens.

Em contraste com a dor sincera dos pugilistas, destacou-se nestes dias a incerteza dos críticos literários. A pergunta central é até que ponto Hemingway foi um grande escritor, e em que grau merece uma coroa de louros que a ele mesmo parecia uma simples narrativa breve, uma circunstância episódica na vida de um homem.

Na realidade, Hemingway foi uma testemunha sôfrega da ação individual, mais do que da natureza humana. Seu herói surgia em qualquer lugar do mundo, em qualquer situação e em qualquer nível da escala social em que fosse necessário lutar encarniçadamente não tanto para sobreviver como para alcançar a vitória. A vitória era apenas um estágio superior do cansaço físico e da incerteza moral.

No universo de Hemingway, a vitória não era destinada ao mais forte, e sim ao mais sábio, com uma sabedoria aprendida na experiência. Nesse sentido era um idealista. Poucas vezes, em sua extensa obra, surgia uma circunstância em que a força bruta prevalecesse contra o conhecimento. O peixe pequeno, se era mais sábio, podia comer o grande. O caçador não vencia o leão porque estava armado com uma espingarda, mas porque conhecia minuciosamente os segredos de seu ofício, e pelo menos em duas ocasiões o leão conhecia melhor os segredos do seu. Em O velho e o mar — narrativa que parece ser uma síntese dos defeitos e virtudes do autor — um pescador solitário, esgotado e perseguido pela má sorte, conseguiu vencer o maior peixe do mundo numa peleja que era mais de inteligência do que de força.

O tempo demonstrará também que Hemingway, como escritor menor, comerá muitos escritores grandes, por seu conhecimento das motivações dos homens e dos segredos de seu ofício. Certa vez, numa entrevista, elaborou a melhor definição de sua obra ao compará-la ao iceberg de gigantesco volume de gelo que flutua na superfície: é apenas um oitavo do volume total, e é invencível, graças aos sete oitavos que o sustentam sob a água.

A transcendência de Hemingway se mantém precisamente na sabedoria oculta que sustenta flutuando uma obra objetiva, de estrutura direta e simples, e às vezes concisa em sua dramaticidade. Hemingway só contou aquilo que viu com os próprios olhos, gozou e sofreu com sua experiência, que era enfim a única coisa em que podia acreditar. Sua vida foi uma contínua e arriscada aprendizagem do ofício, em que foi honesto até o limite do exagero: o leitor deveria perguntar quantas vezes esteve em perigo a própria vida do escritor, para que fosse válido um simples gesto do personagem.

Nesse sentido, Hemingway não foi nada mais, nem nada menos, do que quis ser: um homem completamente consciente em cada ato de sua vida. Seu destino, de certa maneira, foi o de seus heróis, que só tiveram uma importância passageira em um lugar restrito da Terra, e foram eternos pela fidelidade dos que os aceitaram.

Essa é talvez a dimensão mais exata de Hemingway. Provavelmente não é o fim de alguém mas o princípio de ninguém na história da literatura universal. Mas é o legado natural de um esplêndido exemplar humano, de um trabalhador bom e singularmente honrado, que talvez mereça algo mais do que um lugar na glória internacional.

Desventuras de um escritor de livros

Escrever livros é um ofício suicida. Nenhum outro exige tanto tempo, tanto trabalho, tanta dedicação em relação aos benefícios imediatos. Não creio que sejam muitos os leitores que ao terminar a leitura de um livro se perguntem quantas horas de angústias e de infortúnios domésticos custaram ao autor dessas duzentas páginas e quanto recebeu por seu trabalho. Para dizer tudo de uma vez, convém que se saiba que o escritor ganha apenas dez por cento do que o comprador paga pelo livro na livraria. Portanto, o leitor que comprou um livro de vinte pesos só contribuiu com dois pesos para a subsistência do escritor. O resto ficou com os editores, que correram o risco de editá-lo, e os distribuidores e os livreiros. Isto parecerá ainda mais injusto quando se pensa que os melhores escritores são os que costumam escrever menos e fumar mais, e é portanto normal que necessitem pelo menos dois anos e 29.200 cigarros para escrever um livro de duzentas páginas. O que vale dizer em boa aritmética que gastam naquilo que fumam uma quantia superior ao que vão receber pelo livro. Não sem razão me dizia um amigo escritor:

— Todos os editores, distribuidores e livreiros são ricos e todos os escritores são pobres.

O problema é mais crítico nos países subdesenvolvidos, onde o comércio de livros é menos intenso, mas não é exclusividade deles. Nos Estados Unidos, que é o paraíso dos escritores de sucesso, para cada autor que se torna rico da noite para o dia com a loteria das edições de bolso, há centenas de escritores aceitáveis condenados a viver o resto dos seus dias sob a égide dos dez por cento. O último caso espetacular de enriquecimento nos Estados Unidos é o do romancista Truman Capote com seu livro A sangue frio, que nas primeiras semanas lhe proporcionou meio milhão de dólares de direitos autorais e uma quantia semelhante pela adaptação para o cinema. Em compensação, Albert Camus, que continuará nas livrarias quando ninguém mais se recorde do estupendo Truman Capote, vivia de escrever roteiros cinematográficos com pseudônimo, para poder continuar a escrever seus livros. O Prêmio Nobel — que recebeu poucos anos antes de morrer — foi apenas um desafogo momentâneo para seus infortúnios domésticos: proporcionou-lhe mais ou menos quarenta mil dólares, o que nos tempos de hoje dá para comprar uma casa com jardim para as crianças. Melhor, mesmo que involuntário, foi o negócio feito por Jean-Paul Sartre ao recusar o Nobel, pois com sua atitude ganhou uma justa e merecida fama de independente, o que aumentou a procura pelos seus livros.

Muitos escritores sentem saudade do antigo mecenas, rico e generoso senhor que subsidiava os artistas para que trabalhassem à vontade. Embora com outra cara, os mecenas existem. Há grandes consórcios financeiros que, às vezes para pagar menos impostos, outras vezes para desfazer a imagem de tubarões que fizeram junto à opinião pública, e não muitas vezes para tranqüilizar suas consciências, destinam somas consideráveis para patrocinar o trabalho dos artistas. Mas nós escritores gostamos de fazer o que nos dá na telha, e suspeitamos, talvez sem fundamento, que o patrocinador compromete a independência de pensamento e expressão, e dá origem a compromissos indesejáveis. No meu caso, prefiro escrever sem qualquer subsídio, não só porque padeço de um estupendo delírio de perseguição mas porque quando começo a escrever ignoro por completo ao lado de quem estarei ao terminar. Seria injusto que no fim da empreitada estivesse contra a ideologia do patrocinador, coisa muito provável em virtude do inconciliável espírito contestador dos escritores, assim como seria completamente imoral que por casualidade estivesse de acordo.

O sistema de patrocínio, típico da vocação paternalista do capitalismo, parece ser uma réplica da oferta socialista de considerar o escritor um trabalhador a serviço do Estado. Em princípio, a solução socialista é correta, porque liberta o escritor da exploração dos intermediários. Mas na prática até agora, e quem sabe por quanto tempo, o sistema criou riscos mais graves do que as injustiças que pretendeu corrigir. O recente caso de dois péssimos escritores soviéticos condenados a trabalhos forçados na Sibéria, não por escrever mal mas por divergirem do patrocinador, demonstra até que ponto pode ser perigoso o ofício de escrever sob um regime sem a necessária maturidade para admitir a verdade eterna de que nós, escritores, somos uns facínoras a quem os espartilhos doutrinários, e até as disposições legais, apertam mais do que os sapatos. Pessoalmente, acredito que o escritor, como tal, não tem outra obrigação revolucionária senão a de escrever bem. Seu inconformismo, sob qualquer regime, é uma condição essencial que não tem remédio, porque um escritor acomodado provavelmente é um bandido, e com certeza é um mau escritor.

Depois desta triste constatação, parece elementar perguntar por que nós escritores escrevemos. A resposta inevitavelmente é tanto mais melodramática quanto mais sincera. Alguém é escritor simplesmente como se é judeu ou negro. O sucesso é animador, o apoio dos leitores é estimulante, mas estes são ganhos secundários, porque um bom escritor continuará escrevendo de qualquer maneira ainda que com as solas dos sapatos furadas, e ainda que seus livros não sejam vendidos. É uma espécie de deformação que bem explica a barbaridade social de que tantos homens e mulheres se suicidaram pela fome, para fazer algo que enfim, e falando completamente a sério, não serve para nada.

Minhas duas razões contra esta revista

Eis aqui de novo a Alternativa. Retorna depois de um recesso de quase quatro meses que certamente nos serviu para trabalhar menos, para perder menos dinheiro e talvez para errar menos, mas também para refletir, como os padres de outros tempos, sobre o destino de nossas almas. Voltamos a circular outra vez como semanário e desta feita a vinte pesos. O que talvez queira dizer que o recolhimento espiritual nos ajudou a resolver muitos problemas, menos os dois que na minha maneira de ver são a desgraça desta revista: a periodicidade e o preço.

Aqueles de nós que propúnhamos que a Alternativa fosse publicada diariamente continuamos a acreditar que temos a razão. Também continuam crendo que a têm os companheiros que sustentavam a opinião contrária. Eles ganharam pela simples razão de que nem uns nem outros, nem todos juntos, temos dinheiro para colocar um diário na rua. Isto é: não há respaldo financeiro. Era por aí, antes de mais nada, que deveríamos começar.

Revista tem sido um gênero infeliz na Colômbia. Todas, de qualquer espécie, tiveram o destino dos amores de verão e dos ministros da Educação: intenso e fugaz. A única que resistiu a mais de sessenta anos aos acasos dos salões de beleza e aos infartos fulminantes das trocas de proprietários parece mais uma advertência de Deus para castigo de ingênuos e temerários. Talvez nós colombianos não saibamos fazer revistas. Talvez não saibamos lê-las. Mas talvez seja apenas que o lapso de uma semana é um desafio descomunal para a histórica falta de memória dos colombianos: quando chega o sábado os leitores já esqueceram do que foi sua revista favorita no sábado anterior, de maneira que esta tem de conquistar cada semana uma clientela nova que sequer se lembrava de ter sido a mesma clientela fugitiva da semana anterior. É triste mas certo: cada semana compramos uma revista diferente com a mesma ilusão efêmera e única com que a cada quatro anos elegemos um presidente da república. Postas assim as coisas, é difícil lançar um semanário e manter o interesse de um público numeroso e compreensivo, e além disso sensível a uma proposta política diferente, enquanto não se pode competir todos os dias, e em condições semelhantes, com os veículos de opinião que têm em suas mãos todos os poderes do poder. As pelejas dos sábados — nós os bêbados sabemos bem — não passam de promessas de mesa de bar.

O outro problema essencial é o preço. Sem grandes anúncios — que desejamos mas que ninguém nos daria —, sem um partido político que nos sustente, nem um centro mundial de poder que nos mantenha, nem uma agência central de inteligência que nos subsidie para depois poder contar para todos, o preço de capa desta revista órfã de pai e mãe não pode ser menor e a amarga verdade, doa a quem doer, é que os leitores com possibilidade de gastar vinte pesos não são os que mais nos interessam. Portanto, queremos atingir um público e na realidade chegamos a outro. Fazemos uma revista para pobres que muitos pobres não podem comprar. Tentamos criar uma consciência popular, mas à nossa clientela mais acessível interessa menos a justiça social do que as férias em Miami.

Apesar disso, com a temeridade profissional e política que nos diferencia de outros mortais mais felizes, eis aqui Alternativa outra vez. Continuo com ela, como sempre, desde aquele setembro casual e remoto de sua fundação, porque acredito que a despeito de seus dois problemas maiores é um órgão indispensável nas condições atuais do país e da imprensa de esquerda. A única novidade é que não estarei em todos os números, mas a cada 15 dias dentro das quatro paredes desta coluna assinada, para dizer o que me der na telha por minha própria conta e risco. Infelizmente hoje, não tive muito tempo para dizê-lo.

Inocente útil, para servi-lo

C ompanheiros de militância e amigos do exterior se perguntam como é possível que Alternativa diga as coisas que diz e que o governo as tolere. Perguntam como explicamos o contra-senso de que a revista diga que na Colômbia não há liberdade de imprensa, se a própria afirmação impressa é uma prova de que a temos. Perguntam, enfim, que tipo de país é este onde ainda podem acontecer semelhantes coisas enquanto o resto do continente é uma selva de gorilas.

Ainda que pareça incrível, a resposta a essas perguntas foi dada pelo próprio presidente López Michelsen, há pouco mais de um ano, quando o ministro da Defesa, general Abraham Varón Valencia, pediu-lhe, numa reunião de ministros, que fechasse Alternativa pelas coisas que dizia sobre as forças armadas. A negativa do presidente foi imediata:

— Não faço esse favor político à revista.

Dona María Elena de Crovo, que então era ministra do Trabalho, temeu que a pílula presidencial resultasse demasiado amarga para o general Varón Valencia, e a edulcorou com o consolo de que não se preocupasse, meu general, porque, segundo ela, Alternativa acabaria devido a problemas econômicos. Seu cálculo era simples: num país em que a grande imprensa era subsidiada pelos anúncios do grande capital e pelos favores do governo, não lhe parecia possível que uma revista pudesse subsistir sem outro apoio senão o de seus leitores. Ela não percebeu que no mundo há pessoas que vêem a vida de outra forma, e que são capazes de arriscar não só seu dinheiro mas até o couro pela defesa de uma boa causa, quase com tanta temeridade como ela se arriscava no Ministério do Trabalho pela defesa de uma causa ruim. Um ano e meio depois, mal ou bem, a revista continua aqui enquanto dona María Elena de Crovo já não continua nem mal nem bem em nenhuma parte.

Poucas semanas depois daquela reunião explodiu uma bomba na redação de Alternativa e mais tarde outra na casa de seu atual diretor. Era evidente que alguém com mais pressa e menos visão histórica tratava de nos fazer o favor político que o presidente não nos quis fazer. E de fato fez, porque as duas detonações chamaram a atenção dos leitores, aumentaram a circulação da revista e provocaram manifestações de solidariedade no exterior. Um telegrama do futuro presidente da França, François Mitterrand, incitou uma das raivas mitológicas do presidente López Michelsen. Em primeiro lugar, porque não podia dizer que Mitterrand era comunista, se na realidade é um socialista de vanguarda, como López Michelsen poderia ser se os negócios não se interpusessem. E, em segundo lugar, porque foi exatamente esse tipo de rumor internacional que tentara evitar quando se negou a fechar a revista.

Certamente estas repercussões não importavam muito ao presidente, ou teria tido de enfrentá-las, se Alternativa constituísse um perigo real a curto prazo para o governo, ou a longo para o sistema. Mas tanto ele como nós sabemos que ainda não é. Sabe, como nós sabemos, que no arquipélago de incomunicabilidade e irrealidade das esquerdas colombianas não há critério unânime em relação a nada, e muito menos em relação a esta revista. Nas universidades há semanas em que a lêem em voz alta, entre aplausos e gritos de entusiasmo, e há outras semanas em que as mesmas pessoas que a aplaudiram a queimam em cerimônias públicas copiadas dos fascistas. Em compensação, El Tiempo, cuja inércia de poder é tão grande que ninguém mais se dá ao trabalho de queimá-lo, não pode se dar o luxo de ter redatores que pensem com a própria cabeça porque tanto o governo como a própria direção do jornal não o permitem, ainda que em inúmeras ocasiões os seus editores tenham tido a vaidade de se outorgar o título de campeão mundial do direito de discordar. Tampouco a El Tiempo, sem dúvida, o presidente faria o favor de fechar. Mas o assusta com a ameaça pior de renunciar, ou seja, de se fechar em si mesmo se não o deixarem governar como deseja.

Em suma: não faltou razão ao presidente quando nos negou aquele favor político. Mas faltou acrescentar, para ser mais preciso, que ao negar a nós o favor fazia a si mesmo um favor bem maior, que era importante para ele manter fora do país uma imagem de liberal na qual poucos dentro dele acreditam. Talvez seja triste, mas vivemos disso. Até o ponto de que muitos amigos do exterior se perguntem amiúde se esta revista de oposição não será mais apropriadamente o inocente útil do presidente López Michelsen.

Minha resposta é simples: não me importa ser o inocente útil do governo se as coisas que fazemos são de qualquer maneira mais úteis para a esquerda. Seguramente terão de se passar ainda muitos anos para se saber com certeza a qual dos amos resultou mais útil o inocente no balanço final. Mas não há pressa. A última coisa que um inocente perde não é a cabeça e sim o otimismo.

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