Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 04, 2006

As Pequenas Memórias, de José Saramago

O estilo é o homem

A realidade crua da pobreza
nas memórias de infância
de José Saramago


Jerônimo Teixeira


A partir das histórias relatadas em As Pequenas Memórias (Companhia das Letras; 140 páginas; 31 reais), o Nobel português José Saramago, de 84 anos, poderia ter composto tanto um elogio idílico à pureza da infância na zona rural portuguesa quanto um lacrimoso melodrama sobre as famílias pobres de Lisboa. Não fez nem uma coisa nem outra: o memorialista manteve um cortante fio de ironia que o afasta de qualquer nota de celebração ou comiseração. Em um livro que expõe de forma desassombrada as realidades mais duras da própria infância e da adolescência, a ironia, claro, pode ao mesmo tempo servir como uma estratégia de autodefesa. Saramago, porém, resiste à idéia. "A ironia é uma constante no meu trabalho de escritor. Nunca pensei nela como um instrumento de autopreservação psicológica", disse o autor, em entrevista por e-mail a VEJA. Não só a ironia: a frase longa, de sintaxe ao mesmo tempo elegante e tortuosa empregada nesse livro de memórias, é a mesma que o leitor já conhece de romances como História do Cerco de Lisboa. Saramago é daqueles autores cujo estilo já se tornou personalidade – ou vice-versa.

O título do livro não se refere só à sua brevidade: são memórias dos tempos em que o autor era pequeno. Sua vida então se dividia entre a zona rural da Azinhaga, onde nasceu, e os subúrbios pobres de Lisboa. O livro tem lá suas concessões nostálgicas, como nesta analogia convencional entre a viagem de um barco e o passeio da memória (piorada pela associação kitsch entre juventude e sonho): "...o barco rústico que conduziu até às fronteiras do sonho um certo ser que fui e que deixei encalhado algures no tempo". Essa facilidade lírica, porém, não dá o tom geral do livro. As realidades cruas da pobreza – o irmão que morreu de broncopneumomia aos 4 anos, os cômodos divididos entre duas ou mais famílias, as violentas brigas domésticas, a iniciação sexual em casas onde a privacidade era um luxo raro – são descritas com uma objetividade seca.

Mais marcantes do que os pais de Saramago, seus avós maternos, Jerónimo e Josefa, rústicos camponeses da Azinhaga, ganham dignidade no relato. O casal faz uma figura severa, serena e sábia, que será talvez idealizada – mas essa é uma idealização que funciona literariamente. Em um livro no geral tão desencantado, há uma beleza genuína quando o autor relata a frase que teria ouvido da avó de 90 anos: "O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer".

A casa da memória

"Desapareceu num montão de escombros a pobríssima morada de meus avós maternos, esse mágico casulo onde se geraram as metamorfoses decisivas da criança e do adolescente. Essa perda, porém, deixou de me causar sofrimento porque, pelo poder reconstrutor da memória, posso levantar as suas paredes brancas, plantar a oliveira que dava sombra à entrada, entrar nas pocilgas para ver mamar os bácoros, ir à cozinha e deitar do cântaro para o púcaro de esmalte esborcelado a água que pela milésima vez me matará a sede daquele Verão."

Trecho de As Pequenas Memórias

Leia trecho do livro As Pequenas Memórias, de José Saramago

À aldeia chamam-lhe Azinhaga, está naquele lugar por assim dizer desde os alvores da nacionalidade (já tinha foral no século décimo terceiro), mas dessa estupenda veterania nada ficou, salvo o rio que lhe passa mesmo ao lado (imagino que desde a criação do mundo), e que, até onde alcançam as minhas poucas luzes, nunca mudou de rumo, embora das suas margens tenha saído um número infinito de vezes. A menos de um quilómetro das últimas casas, para o sul, o Almonda, que é esse o nome do rio da minha aldeia, encontra-se com o Tejo, ao qual (ou a quem, se a licença me é permitida), ajudava, em tempos idos, na medida dos seus limitados caudais, a alagar a lezíria quando as nuvens despejavam cá para baixo as chuvas torrenciais do Inverno e as barragens a montante, pletóricas, congestionadas, eram obrigadas a descarregar o excesso de água acumulada. A terra é plana, lisa como a palma da mão, sem acidentes orográficos dignos de tal nome, um ou outro dique que por ali se tivesse levantado mais servia para guiar a corrente aonde causasse menos dano do que para conter o ímpeto poderoso das cheias. Desde tão distantes épocas a gente nascida e vivida na minha aldeia aprendeu a negociar com os dois rios que acabaram por lhe configurar o carácter, o Almonda, que a seus pés desliza, o Tejo, lá mais adiante, meio oculto por trás da muralha de choupos, freixos e salgueiros que lhe vai acompanhando o curso, e um e outro, por boas ou más razões, omnipresentes na memória e nas falas das famílias. Foi nestes lugares que vim ao mundo, foi daqui, quando ainda não tinha dois anos, que meus pais, migrantes empurrados pela necessidade, me levaram para Lisboa, para outros modos de sentir, pensar e viver, como se nascer eu onde nasci tivesse sido consequência de um equívoco do acaso, de uma casual distracção do destino, que ainda estivesse nas suas mãos emendar. Não foi assim. Sem que ninguém de tal se tivesse apercebido, a criança já havia estendido gavinhas e raízes, a frágil semente que então eu era havia tido tempo de pisar o barro do chão com os seus minúsculos e mal seguros pés, para receber dele, indelevelmente, a marca original da terra, esse fundo movediço do imenso oceano do ar, esse lodo ora seco, ora húmido, composto de restos vegetais e animais, de detritos de tudo e de todos, de rochas moídas, pulverizadas, de múltiplas e caleidoscópicas substâncias que passaram pela vida e à vida retornaram, tal como vêm retornando os sóis e as luas, as cheias e as secas, os frios e os calores, os ventos e as calmas, as dores e as alegrias, os seres e o nada. Só eu sabia, sem consciência de que o sabia, que nos ilegíveis fólios do destino e nos cegos meandros do acaso havia sido escrito que ainda teria de voltar à Azinhaga para acabar de nascer. Durante toda a infância, e também os primeiros anos da adolescência, essa pobre e rústica aldeia, com a sua fronteira rumorosa de água e de verdes, com as suas casas baixas rodeadas pelo cinzento prateado dos olivais, umas vezes requeimada pelos ardores do Verão, outras vezes transida pelas geadas assassinas do Inverno ou afogada pelas enchentes que lhe entravam pela porta dentro, foi o berço onde se completou a minha gestação, a bolsa onde o pequeno marsupial se recolheu para fazer da sua pessoa, em bem e talvez em mal, o que só por ela própria, calada, secreta, solitária, poderia ter sido feito.

Dizem os entendidos que a aldeia nasceu e cresceu ao longo de uma vereda, de uma azinhaga, termo que vem de uma palavra árabe, as-zinaik, "rua estreita", o que em sentido literal não poderia ter sido naqueles começos, pois uma rua, seja estreita, seja larga, sempre será uma rua, ao passo que uma vereda nunca será mais que um atalho, um desvio para chegar mais depressa aonde se pretende, e em geral sem outro futuro nem desmedidas ambições de distância. Ignoro em que altura se terá introduzido na região o cultivo extensivo da oliveira, mas não duvido, porque assim o afirmava a tradição pela boca dos velhos, de que por cima dos mais antigos daqueles olivais já teriam passado, pelo menos, dois ou três séculos. Não passarão outros. Hectares e hectares de terra plantados de oliveiras foram impiedosamente rasoirados há alguns anos, cortaram-se centenas de milhares de árvores, extirparam-se do solo profundo, ou ali se deixaram a apodrecer, as velhas raízes que, durante gerações e gerações, haviam dado luz às candeias e sabor ao caldo. Por cada pé de oliveira arrancado, a Comunidade Europeia pagou um prémio aos proprietários das terras, na sua maioria grandes latifundiários, e hoje, em lugar dos misteriosos e vagamente inquietantes olivais do meu tempo de criança e adolescente, em lugar dos troncos retorcidos, cobertos de musgo e líquenes, esburacados de locas onde se acoitavam os lagartos, em lugar dos dosséis de ramos carregados de azeitonas negras e de pássaros, o que se nos apresenta aos olhos é um enorme, um monótono, um interminável campo de milho híbrido, todo com a mesma altura, talvez com o mesmo número de folhas nas canoilas, e amanhã talvez com a mesma disposição e o mesmo número de maçarocas, e cada maçaroca talvez com o mesmo número de bagos. Não estou a queixar-me, não estou a chorar a perda de algo que nem sequer me pertencia, estou só a tentar explicar que esta paisagem não é a minha, que não foi neste sítio que nasci, que não me criei aqui. Já sabemos que o milho é um cereal de primeira necessidade, para muita gente ainda mais que o azeite, e eu próprio, nos meus tempos de rapaz, nos verdes anos da primeira adolescência, andei pelos milharais de então, depois de terminada a apanha pelos trabalhadores, com uma sacola de pano pendurada ao pescoço, a rabiscar as maçarocas que tivessem passado em claro. Confesso, no entanto, que experimento agora algo assim como uma satisfação maliciosa, uma desforra que não procurei nem quis, mas que veio ao meu encontro, quando ouço dizer à gente da aldeia que foi um erro, um disparate dos maiores, terem-se arrancado os velhos olivais. Também inutilmente se chorará o azeite derramado. Contam-me agora que se está voltando a plantar oliveiras, mas daquelas que, por muitos anos que vivam, serão sempre pequenas. Crescem mais depressa e as azeitonas colhem-se mais facilmente. O que não sei é onde se irão meter os lagartos.

A criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem. A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não a interrogava, não dizia nem pensava, por estas ou outras palavras: "Que bela paisagem, que magnífico panorama, que deslumbrante ponto de vista!" Naturalmente, quando subia ao campanário da igreja ou trepava ao topo de um freixo de vinte metros de altura, os seus jovens olhos eram capazes de apreciar e registar os grandes espaços abertos diante de si, mas há que dizer que a sua atenção sempre preferiu distinguir e fixar-se em coisas e seres que se encontrassem perto, naquilo que pudesse tocar com as mãos, naquilo também que se lhe oferecesse como algo que, sem disso ter consciência, urgia compreender e incorporar ao espírito (escusado será lembrar que a criança não sabia que levava dentro de si semelhante jóia), fosse uma cobra rastejando, uma formiga levantando ao ar uma pragana de trigo, um porco a comer do cocho, um sapo bamboleando sobre as pernas tortas, ou então uma pedra, uma teia de aranha, a leiva de terra levantada pelo ferro do arado, um ninho abandonado, a lágrima de resina escorrida no tronco do pessegueiro, a geada brilhando sobre as ervas rasteiras. Ou o rio. Muitos anos depois, com palavras do adulto que já era, o adolescente iria escrever um poema sobre esse rio - humilde corrente de água hoje poluída e malcheirosa - em que se tinha banhado e por onde havia navegado. Protopoema lhe chamou e aqui fica: "Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos nós cegos, puxo um fio que me aparece solto. / Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os dedos. / É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, e tem a macieza quente do lodo vivo. / É um rio. / Corre-me nas mãos, agora molhadas. / Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de repente não sei se as águas nascem de mim, ou para mim fluem. / Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o próprio corpo do rio. / Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os barcos e o céu que os cobre, e os altos choupos que vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos. / Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas águas como os apelos imprecisos da memória. / Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga. / Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e firme pulsar de coração. / Agora o céu está mais perto e mudou de cor. / É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo acorda o canto das aves. / E quando num largo espaço o barco se detém, o meu corpo despido brilha debaixo do sol, entre o esplendor maior que acende a superfície das águas. / Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da memória e o vulto subitamente anunciado do futuro. / Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar calada sobre a proa rigorosa do barco. / Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que as aves digam nos ramos por que são altos os choupos e rumorosas as suas folhas. / Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem, sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas verticais circundam. / Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva. / Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se juntarem às mãos. / Depois saberei tudo." Não se sabe tudo, nunca se saberá tudo, mas há horas em que somos capazes de acreditar que sim, talvez porque nesse momento nada mais nos podia caber na alma, na consciência, na mente, naquilo que se queira chamar ao que nos vai fazendo mais ou menos humanos. Olho de cima da ribanceira a corrente que mal se move, a água quase estagnada, e absurdamente imagino que tudo voltaria a ser o que foi se nela pudesse voltar a mergulhar a minha nudez da infância, se pudesse retomar nas mãos que tenho hoje a longa e húmida vara ou os sonoros remos de antanho, e impelir, sobre a lisa pele da água, o barco rústico que conduziu até às fronteiras do sonho um certo ser que fui e que deixei encalhado algures no tempo.

Já não existe a casa em que nasci, mas esse facto é-me indiferente porque não guardo qualquer lembrança de ter vivido nela. Também desapareceu num montão de escombros a outra, aquela que durante dez ou doze anos foi o lar supremo, o mais íntimo e profundo, a pobríssima morada dos meus avós maternos, Josefa e Jerónimo se chamavam, esse mágico casulo onde sei que se geraram as metamorfoses decisivas da criança e do adolescente. Essa perda, porém, há muito tempo que deixou de me causar sofrimento porque, pelo poder reconstrutor da memória, posso levantar em cada instante as suas paredes brancas, plantar a oliveira que dava sombra à entrada, abrir e fechar o postigo da porta e a cancela do quintal onde um dia vi uma pequena cobra enroscada, entrar nas pocilgas para ver mamar os bácoros, ir à cozinha e deitar do cântaro para o púcaro de esmalte esborcelado a água que pela milésima vez me matará a sede daquele Verão. Então digo à minha avó: "Avó, vou dar por aí uma volta." Ela diz "Vai, vai", mas não me recomenda que tenha cuidado, nesse tempo os adultos tinham mais confiança nos pequenos a quem educavam. Meto um bocado de pão de milho e um punhado de azeitonas e figos secos no alforge, pego num pau para o caso de ter de me defender de um mau encontro canino, e saio para o campo. Não tenho muito por onde escolher: ou o rio, e a quase inextricável vegetação que lhe cobre e protege as margens, ou os olivais e os duros restolhos do trigo já ceifado, ou a densa mata de tramagueiras, faias, freixos e choupos que ladeia o Tejo para jusante, depois do ponto de confluência com o Almonda, ou, enfim, na direcção do norte, a uns cinco ou seis quilómetros da aldeia, o Paul do Boquilobo, um lago, um pântano, uma alverca que o criador das paisagens se tinha esquecido de levar para o paraíso. Não havia muito por onde escolher, é certo, mas, para a criança melancólica, para o adolescente contemplativo e não raro triste, estas eram as quatro partes em que o universo se dividia, se não foi cada uma delas o universo inteiro. Podia a aventura demorar horas, mas nunca acabaria antes que o seu propósito tivesse sido alcançado. Atravessar sozinho as ardentes extensões dos olivais, abrir um árduo caminho por entre os arbustos, os troncos, as silvas, as plantas trepadeiras que erguiam muralhas quase compactas nas margens dos dois rios, escutar sentado numa clareira sombria o silêncio da mata somente quebrado pelo pipilar dos pássaros e pelo ranger das ramagens sob o impulso do vento, deslocar-se por cima do paul, passando de ramo em ramo na extensão povoada pelos salgueiros chorões que cresciam dentro de água, não são, dir-se-á, proezas que justifiquem referência especial numa época como esta nossa, em que, aos cinco ou seis anos, qualquer criança do mundo civilizado, mesmo sedentária e indolente, já viajou a Marte para pulverizar quantos homenzinhos verdes lhe saíram ao caminho, já dizimou o terrível exército de dragões mecânicos que guardava o ouro de Forte Knox, já fez saltar em pedaços o rei dos tiranossauros, já desceu sem escafandro nem batiscafo às fossas submarinas mais profundas, já salvou a humanidade do aerólito monstruoso que vinha aí destruir a Terra. Ao lado de tão superiores façanhas, o rapazinho da Azinhaga só teria para apresentar a sua ascensão à ponta extrema do freixo de vinte metros, ou então, modestamente, mas de certeza com maior proveito degustativo, as suas subidas à figueira do quintal, de manhã cedo, para colher os frutos ainda húmidos da orvalhada nocturna e sorver, como um pássaro guloso, a gota de mel que surdia do interior deles. Pouca coisa, em verdade, mas é bem provável que o heróico vencedor do tiranossauro não fosse nem sequer capaz de apanhar uma lagartixa à mão.

Não falta quem afirme seriamente, com o reforço abonatório de alguma citação clássica, que a paisagem é um estado de alma, o que, posto em palavras comuns, quererá dizer que a impressão causada pela contemplação de uma paisagem sempre estará dependente das variações temperamentais e do humor jovial ou atrabilioso que estiverem actuando dentro de nós no preciso momento em que a tivermos diante dos olhos. Não me atrevo a duvidar. Presume-se, portanto, que os estados de alma sejam pertença exclusiva da maioridade, da gente crescida, das pessoas que já são competentes para manejar, com mais ou menos propriedade, os graves conceitos com que subtilezas destas se analisam, definem e minudenciam. Coisas de adultos, que julgam saber tudo. A este adolescente, por exemplo, ninguém lhe perguntou que tal se sentia de humor e que interessantes vibrações lhe estava registando o sismógrafo da alma quando, ainda noite, numa madrugada inesquecível, ao sair da cavalariça onde entre cavalos havia dormido, foi tocado na fronte, na cara, em todo o corpo, e em algo para além do corpo, pela alvura da mais resplandecente das luas que alguma vez olhos humanos terão visto. E também o que foi que sentiu quando, já saído de todo o sol, enquanto ia guiando os porcos por cerros e vales no regresso da feira onde vendera a maior parte deles, deu por que estava a pisar um trecho de calçada tosca, formada de lajes que pareciam mal ajustadas, insólito descobrimento num descampado que parecia deserto e abandonado desde o princípio do mundo. Só muito mais tarde, muitos anos depois, compreenderia que havia pisado o que certamente seria um resto de estrada romana.

Contudo, estes assombros, tanto os meus como os dos precoces manipuladores de universos virtuais, não são nada se comparados àquela vez em que, quase rente ao sol-posto, saí da Azinhaga, da casa dos meus avós (teria então uns quinze anos), para ir a uma povoação distante, na banda de lá do Tejo, onde me encontraria com uma rapariga de quem julgava estar enamorado. Passou-me para o outro lado do rio um velho barqueiro chamado Gabriel (a gente da aldeia chamava-lhe Graviel), vermelho de sol e de aguardente, uma espécie de gigante de cabelos brancos, corpulento como um S. Cristóvão. Tinha-me sentado nas tábuas do embarcadoiro, a que chamávamos porto, da margem de cá, à espera dele, enquanto escutava, sobre a superfície aquática tocada pela última claridade do dia, o ruído acompassado dos remos. Ele aproximava-se lentamente, e eu percebi (seria do meu estado de alma?) que estava a viver um momento que nunca haveria de esquecer. Um pouco acima do porto da outra margem havia um plátano enorme debaixo do qual a manada de bois da herdade vinha dormir a sesta. Meti pés ao caminho, cortando a direito por alqueves, marachas, valas, charcos, milharais, como um caçador furtivo à procura de uma peça rara. A noite tinha caído, no silêncio do campo só se ouviam os meus passos. Se o encontro foi ou não afortunado, mais adiante o contarei. Houve baile, fogos-de-artifício, creio que saí da povoação quando já seria perto da meia-noite. Uma lua cheia, menos resplandecente que a outra, iluminava tudo em redor. Antes do ponto em que teria de abandonar a estrada para meter a corta-mato, o caminho estreito por onde ia pareceu terminar de repente, esconder-se atrás de um valado alto, e mostrou-me, como a impedir o passo, uma árvore isolada, alta, escuríssima no primeiro momento contra a transparência nocturna do céu. De súbito, porém, soprou uma brisa rápida. Arrepiou os caules tenros das ervas, fez estremecer as navalhas verdes dos canaviais e ondular as águas pardas de um charco. Como uma onda, soergueu as ramagens estendidas da árvore, subiu-lhe pelo tronco murmurando, e então, de golpe, as folhas viraram para a lua a face escondida e toda a faia (era uma faia) se cobriu de branco até à cima mais alta. Foi um instante, nada mais que um instante, mas a lembrança dele durará o que a minha vida tiver de durar. Não havia tiranossauros, marcianos ou dragões mecânicos, é certo que um aerólito cruzou o céu (não custa a acreditar que sim), mas a humanidade, como veio a verificar-se depois, não esteve em perigo. Depois de muito caminhar, ainda o amanhecer vinha longe, achei-me no meio do campo com uma barraca feita de ramos e palha, e lá dentro um pedaço de pão de milho bolorento com que pude enganar a fome. Ali dormi. Quando despertei, na primeira claridade da manhã, e saí, esfregando os olhos, para a neblina luminosa que mal deixava ver os campos ao redor, senti dentro de mim, se bem recordo, se não o estou a inventar agora, que tinha, finalmente, acabado de nascer. Já era hora.

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