Uma comédia que mistura Shakespeare
e Flaubert – e que é narrada por uma ave
Rinaldo Gama
Agência RBS |
Verissimo: inspirado por Noite de Reis |
Escrita por William Shakespeare, provavelmente em 1601, a peça Noite de Reis é uma obra-prima da comédia romântica. É ela que inspira A Décima Segunda Noite (150 páginas; 28,90 reais), o novo livro de Luis Fernando Verissimo, feito sob encomenda para a coleção Devorando Shakespeare, da editora Objetiva. Foi o próprio Verissimo que escolheu Noite de Reis quando aceitou o desafio de recriar um trabalho shakespeariano. "Eu me lembrei do final do filme Shakespeare Apaixonado, quando ele começa a escrever a peça pensando na amada que perdeu, e quis falar de escritores apaixonados por suas personagens", disse a VEJA.
Quem narra o romance de Verissimo é um papagaio. Henri é francês, de Paris, onde se passa a ação do livro. Não se limita a repetir o que lhe ensinam: ele conversa. Sabe português porque teve donos brasileiros, contudo deixa às vezes escapar frases inteiras no idioma de Gustave Flaubert. Aliás, "entende" de Flaubert – o que permite digressões divertidas sobre o escritor francês (que deu papel central a um pássaro da mesma espécie no conto Um Coração Simples) e outras brincadeiras literárias.
Henri desfia o enredo do livro porque virou enfeite de um salão de beleza – núcleo da trama – decorado com "motivos brasileiros". Pintado de verde e amarelo para esconder a plumagem cinza, o papagaio sente que está sendo envenenado pelas camadas de tinta e grava preocupado o testemunho da comédia de erros que presenciou. Seguindo de perto a trama de Noite de Reis, Verissimo põe em cena um casal de gêmeos, Sebastião e Violeta, que aterrissa na capital francesa para tentar a vida e é separado no aeroporto (na peça de Shakespeare, Sebastian e Viola se perdem num naufrágio). As confusões começam quando a bela Violeta – por quem Henri se apaixona – tem de se disfarçar de homem para conseguir emprego no salão.
Dono de um estilo lapidado e de uma irresistível ironia, Verissimo empenha-se para que seu humor – reforçado pelo de Shakespeare – não se perca, mesmo quando a arte de escrever está no centro das atenções da narrativa. Bom exemplo é a passagem na qual Henri fica sabendo que um de seus antigos proprietários, candidato a romancista, se tornou professor. Sarcástico, ele bica: "É professor? De quê? De literatura, claro. Como não conseguia escrever, ensina como se faz".