Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 18, 2006

Morte de modelo alerta para o perigo da anorexia

Anorexia
Ela fez mais uma vítima

A modelo Ana Carolina passou a ter sintomas
da doença depois de ser chamada de obesa.
Tinha, então, 51 quilos


Juliana Linhares

Fotos Reuters e Fabiano Accorsi
Ana Carolina Reston, morta na última semana: a foto menor foi feita no ano passado, quando a modelo tinha 19 anos e pesava 42 quilos

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"Vá para casa e emagreça"
A vida no limite

A modelo Ana Carolina Reston Macan, morta na última terça-feira em decorrência de problemas causados por uma anorexia, viveu seus últimos anos sob pressão. À angústia causada pelo excesso de vaidade e autocrítica que costuma acometer grande parte das adolescentes e pós-adolescentes somaram-se problemas no trabalho e em casa. Aos 21 anos, Carol, como era conhecida, passava por uma fase crucial na carreira e difícil na família – que, desde os 18 anos, ajudava a sustentar.

A modelo morava com os pais, Narciso e Miriam Macan, e o irmão, Rafael, de 19 anos, em uma pequena chácara em Jundiaí, no interior de São Paulo. A propriedade fica distante da cidade e os Macan não têm carro. Para ir ao supermercado, sair à noite ou ir à escola, Carol tinha de percorrer a pé uma trilha de 2 quilômetros, cercada de mato alto, até chegar ao ponto do ônibus que a levaria ao centro. A família já viveu com mais conforto. Há quatro anos, meses antes de Carol ir para a China a trabalho, a casa de seus pais foi assaltada. Ladrões surraram Narciso, portador de Parkinson e, hoje, também de Alzheimer, e levaram 4 quilos de ouro – matéria-prima para o trabalho da mãe, ourives. A situação financeira dos Macan – cujo único rendimento fixo vem da aposentadoria de Narciso, de 880 reais – complicou-se. Miriam começou a vender bijuterias para amigos, e Carol, que já ajudava no orçamento da casa, acumulou ainda mais responsabilidades. "Ela passou a sustentar a família quase sozinha. Ligava da China, preocupada se a mãe havia pago as contas de luz e de água", conta Ektan Strauss, prima da modelo e uma de suas melhores amigas.

A viagem para a China, em 2003, prometia ser o grande vôo inicial da menina que, desde pequena, sonhava em ser modelo. Na primeira agência que visitou, aos 12 anos, foi recusada por causa de seu 1,70 metro, considerado insuficiente. Disseram-lhe que, para trabalhar, ela teria de ganhar pelo menos 2 centímetros. Diante dos pedidos da filha, Miriam levou-a a um ortopedista, que observou que Carol andava ligeiramente curvada. "Ela começou a fazer sessões de alongamento e ginástica para fortalecer os músculos do dorso", conta a prima Ektan. Um ano depois, voltou à agência. Media 1,72 metro.

Fotos Rubens Cardia/Folha Imagem

Foi recebida pelo mercado como uma promessa de sucesso. Aos 18 anos, a convite de uma agência de São Paulo, deixou a pequena Jundiaí para aterrissar em Guangzhou, a duas horas de Hong Kong. Foi lá que a doença deu os primeiros sinais. "Quando chegou, ela pesava 51 quilos. Era uma magra bonita", lembra Ana Paula Smolinsky, modelo gaúcha que dividiu um apartamento com Carol na cidade. Ela conta que, no início, a amiga se alimentava à maneira da maioria dos adolescentes que passam a viver fora de casa: comia salgadinhos, macarrão e tomava refrigerantes. Tudo mudou depois que, segundo conta a prima Ektan, "um agente de moda chinês disse que ela estava 'obesa'". Em cerca de dois meses, a modelo perdeu 4 quilos. "Passou a falar só de regime e ficava o dia inteiro com um pratinho de macarrão no estômago", diz Ana Paula.

De volta da China, alguns meses depois, Carol foi contratada por uma pequena agência de Brasília, que a levou para o México. A essa altura, a modelo já estava com 42 quilos. Mesmo assim, lembra a mãe, não parava de reclamar da existência de "pneuzinhos". Lá, conseguiu poucos trabalhos. "O mercado do México prefere as meninas mais curvilíneas", afirma Lica Kohlrausch, dona da agência brasileira de modelos L'Equipe. Foi por meio da L'Equipe, e por sugestão de Lica, que Carol viajou, em 2005, para o Japão. "Eu disse a ela que o país era famoso pelas modelos magérrimas", lembra a empresária. Lica conta que, nessa fase, não sabia que Carol estava doente. Quando fazia seu primeiro trabalho em Osaka, para uma confecção local, Carol desmaiou e teve de ser levada ao hospital.

Retornou ao Brasil no fim de 2005. Ao vê-la no aeroporto, a mãe teve uma crise de choro: a filha apresentava olheiras escuras, cabelo ralo e os ossos do corpo aparentes. A família fez uma feijoada para recepcioná-la. Carol recusou-se a comer. Diante da insistência da mãe, ingeriu um pedaço de pão. Foi o suficiente para que vomitasse na frente de todos. Ela não conseguia mais se alimentar, um sintoma clássico da doença em seu estágio avançado. "Minha sobrinha dizia que a comida não entrava", conta Mirtes Reston. A L'Equipe sugeriu que a modelo procurasse um psicólogo. Chegou a marcar duas consultas para ela com um especialista, mas Carol nunca compareceu às sessões. "Ela chorava e dizia que não precisava de médico", lembra a mãe. "Eu aceitava porque não sabia que anorexia podia matar."

Lailson Santos
Miriam, a mãe: "Eu não sabia que anorexia matava"


No currículo de Carol constam trabalhos para grifes famosas, como Armani, Fendi e Dior. Em seus últimos meses de vida, no entanto, ela ganhou pouquíssimo dinheiro como modelo. De novembro de 2005, quando voltou ao Brasil, até o dia em que morreu, recebeu apenas 988 reais por três trabalhos: um desfile, um editorial e um catálogo de moda. Para continuar ajudando em casa (era responsável pelas compras de supermercado, algumas das contas e metade do pagamento do convênio de saúde do pai), distribuía panfletos em portas de boates e trabalhava como recepcionista em casas noturnas na região de Jundiaí. Por esses trabalhos, recebia cerca de 50 reais por noite. A mãe conta que, quando voltou do Japão, Carol trouxe um iPod de presente para o irmão. Havia comprado um para ela também, mas este durou pouco. "Assim que chegou, ela viu que a despensa estava vazia. No dia seguinte, vendeu o aparelho para podermos fazer duas compras de supermercado", conta Miriam.

Quando foi internada, Carol estava sem comer havia dois dias. Pesava 40 quilos e vestia calça número 34. "Antes de ir para o hospital, ela sentia muita dor nas costas e chegou a tomar dez Buscopan (analgésico) de uma só vez", diz sua prima Ektan. Internada pela família, sofreu uma parada respiratória ainda na enfermaria. Morreu depois de ficar 21 dias na UTI, vítima de insuficiência de múltiplos órgãos, septicemia e infecção urinária. Carol tinha dois projetos para 2007: fazer uma viagem de navio pelas praias brasileiras com o namorado (já havia pago algumas parcelas) e deixar a profissão de modelo. "Ela adorava o mar e dizia que queria prestar vestibular para oceanografia", conta a mãe. Pobre menina.
"Vá para casa e emagreça"

Como as exigências de agências
e estilistas podem minar a saúde
física e mental das modelos


Paula Neiva

Mauricio Lima/AFP
Bastidores de desfile na última São Paulo Fashion Week: o império do visual pele e osso


A morte por anorexia da modelo Ana Carolina fez soar um alarme no mundo da moda. No fim da tarde da última sexta-feira, as principais agências de modelos do país se reuniram, em São Paulo, para discutir mudanças nas regras de contratação de suas profissionais. Uma das idéias em pauta é tornar obrigatória a avaliação médica periódica das modelos, que ateste saúde física e mental. Também se discutiu a necessidade de fiscalizar, de maneira mais efetiva, a assistência prestada pelas agências às meninas que vão trabalhar no exterior. A falta de orientação é um dos maiores perigos que rondam as jovens modelos, principalmente em início de carreira. A pouca idade (em média, 13 anos), somada à distância da família e à falta de informação, as deixa ainda mais vulneráveis às pressões do mercado – mercado de carne magra.

Mas não adianta fazer reunião se não houver uma mudança de parâmetros e de atitude, palavrinha que, aqui, tem um significado muito maior do que fazer caras e bocas. Não é possível continuar com o tratamento que muitas vezes essas meninas recebem de agentes, produtores, fotógrafos e estilistas. "Baleia", "elefanta", "gorda" são alguns dos insultos que elas ouvem quando saem dos rígidos padrões exigidos na passarela. Algumas são até colocadas numa espécie de quarentena: "Vá para casa e emagreça". Como? Muitas agências não se importam. Durante a viagem para a China, em 2003, Ana Carolina foi advertida que estava acima do peso – "obesa", segundo um dos agentes. Na ocasião, ela pesava 51 quilos – 2 a menos do que o limite tido como saudável pelos médicos. "Os adjetivos depreciativos calam fundo nessas garotas, já que são adolescentes e precisam da opinião dos outros para construir a imagem que têm de si mesmas", diz o psicólogo Marco Antonio De Tommaso, especializado no tratamento de transtornos alimentares.

O impacto negativo das pressões e insultos sobre a auto-estima e a auto-imagem dessas meninas foi demonstrado por um levantamento realizado recentemente em São Paulo. O trabalho baseou-se em entrevistas com 140 modelos acima de 18 anos, que apresentavam índice de massa corporal médio de 17,6 – ou seja, abaixo do desejável. Nove em cada dez entrevistadas disseram que, se pudessem, fariam lipoaspiração. Uma delas, com 1,80 metro de altura e 55 quilos, afirmou que gostaria de ser submetida a uma cirurgia de redução de estômago. Segundo os especialistas, profissionais da moda têm até o dobro de risco de desenvolver problemas alimentares. Entre as modelos, existem dois grupos mais vulneráveis a esses distúrbios: o daquelas que não são magras por natureza e, para manter a silhueta esquálida, precisam sacrificar a saúde, e o das que já saíram da adolescência mas tentam recriar o corpo que tinham aos 15 anos – de poucas curvas e quadris estreitíssimos –, atualmente o biótipo mais procurado e aplaudido pela indústria da moda. Uma das que sucumbiram às pressões foi a modelo Isabella Fiorentino, hoje com 29 anos. Quando, aos 20, começou a ganhar curvas mais acentuadas, ela foi acometida por um transtorno que quase se transformou em anorexia. "Eu pulava refeições, até que praticamente deixei de comer. A sorte é que minha família percebeu e eu entrei logo em tratamento", diz Isabella. Enquanto seu corpo adoecia, sua carreira deslanchava. "Aquele foi um dos períodos em que mais recebi elogios e mais me ofereceram trabalhos", afirma.

A pressão para manter a silhueta e o sonho de estar na passarela não desencadeiam por si sós a anorexia. Mas são um combustível poderoso para quem é suscetível. Os estilistas do mundo inteiro costumam confeccionar as roupas que serão usadas na passarela em tamanho 38, no máximo. A maioria deles exige ainda que as calças, blusas, vestidos, saias e shorts fiquem um pouco folgados nas modelos – "para dar um ar mais elegante", justificam. Por isso, fazem questão de modelos com quadris de, no máximo, 90 centímetros – uma característica pouco comum para quem mede, em geral, mais de 1,75 metro. Para a maioria, só passando fome, mesmo. Em setembro, diante da multiplicação dos casos de moças com distúrbios alimentares graves, os organizadores da semana de moda de Madri proibiram o desfile de modelos com índice de massa corporal inferior a 18 – o parâmetro mínimo tido como saudável. O episódio causou alvoroço e cogitou-se adotar medidas semelhantes nos desfiles de Milão e Londres. A proposta, porém, não foi adiante. A ditadura da magreza extrema continua.

A ditadura da magreza

O índice de massa corporal (IMC) aponta a relação entre o peso e a altura de uma pessoa. Quanto mais magra ela é, menor é o índice. Desde o fim dos anos 80, como mostra o quadro, o IMC das modelos vem caindo, por exigência do mercado da moda

FIM DOS ANOS 80 E INÍCIO DOS 90

LINDA EVANGELISTA
Altura: 1,77 metro
Peso: 55 quilos
IMC 17,5

CINDY CRAWFORD
Altura: 1,77 metro
Peso: 57 quilos
IMC 18,2
Terry O'Neill/Getty Images

CLAUDIA SCHIFFER
Altura: 1,79 metro
Peso: 56 quilos
IMC 17,5
Remy De La Mauviniere/AP

ELLE MACPHERSON
Altura: 1,83 metro
Peso: 56 quilos
IMC 16,7

FIM DOS ANOS 90

KATE MOSS
Altura: 1,70 metro
Peso: 48 quilos
IMC 16,6
Marie Hippenmeyer/AFP/Getty Images

HOJE

GISELE BÜNDCHEN
Altura: 1,79 metro
Peso: 52 quilos
IMC 16,2
Sergio Moraes/Reuters
ANA BEATRIZ BARROS
Altura: 1,80 metro
Peso: 52 quilos
IMC 16
Fernanda Calfat/Getty Images
JEISA CHIMINAZZO
Altura: 1,77 metro
Peso: 46 quilos
IMC 14,7
J. F. Diorio/AE



A vida no limite

A anorexia é uma doença que desafia
a medicina e cujo tratamento é difícil
e sem garantia de cura


Anna Paula Buchalla

Álbum de família
Lailson Santos
Rafaela, de 22 anos, chegou a pesar 36 quilos para 1,70 metro. À esq., a jovem aos 16 anos, quando tinha 58 quilos


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Quadro: Os sinais que elas dão e muitos pais não vêem

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Anorexia: Ela fez mais uma vítima
"Vá para casa e emagreça"


Um dos parâmetros usados pela psiquiatria para definir a anorexia é a pessoa estar 15% ou mais abaixo do peso ideal. Com 40 quilos, Ana Carolina ao morrer estava 13 quilos abaixo do mínimo para o seu 1,72 metro de altura – ou seja, ela pesava 25% menos do que deveria. A magreza excessiva é apenas a conseqüência mais visível da anorexia, uma doença primordialmente feminina. Para cada vinte mulheres, há apenas um homem na mesma condição. Ela afeta sobretudo garotas e jovens entre 13 e 20 anos, impingindo a suas vítimas um sofrimento físico e psíquico enorme. Na maioria dos casos, como no de Ana Carolina, o processo começa com uma dieta aparentemente inocente, para perder alguns quilinhos – e termina deflagrando a recusa sistemática em alimentar-se. Por mais que emagreça, a doente se vê gorda. Quanto mais parentes e amigos insistem para que coma, mais ela se isola do convívio social e esconde o corpo esquelético sob roupas largas. É uma experiência infernal.

Descrita pela primeira vez em 1689, pelo médico inglês Richard Morton, que a batizou de "atrofia nervosa", a anorexia ainda desafia a medicina. Sabe-se que o distúrbio tem um forte componente genético, mas não se conseguiu definir com clareza seus mecanismos. No campo estritamente psicológico, suas vítimas tendem a ser pessoas rígidas consigo próprias, competitivas e perfeccionistas. Em geral, são filhas de mulheres autoritárias e, muitas vezes, com fixação na própria imagem corporal. Existem dois tipos de doente. No primeiro grupo estão os portadores de anorexia restritiva, que reduzem a ingestão de alimentos a praticamente nada. Há relatos de meninas que ingerem somente 300 calorias diárias, cinco vezes menos do que se consome nas dietas saudáveis de perda de peso. No segundo grupo estão os anoréxicos que desenvolvem também bulimia, alternando períodos de quase completa inanição com excessos à mesa – "compensados" pela indução de vômito e pelo uso de laxantes, diuréticos e anfetaminas. Até 50% dos pacientes anoréxicos desenvolvem sintomas bulímicos. Nos últimos cinco anos, os pesquisadores têm notado um aumento de casos de pacientes entre 8 e 11 anos de idade. "Desde muito cedo as meninas são bombardeadas com o culto à magreza. Isso pode aumentar o risco de essas crianças apresentarem distúrbios alimentares quando chegarem à adolescência", afirma a psiquiatra Angélica Claudino, coordenadora do Programa de Assistência a Pacientes com Transtornos Alimentares, da Universidade Federal de São Paulo.

Da mesma forma como a depressão não é uma tristeza profunda, a magreza excessiva não é necessariamente anorexia. Existem aquelas pessoas programadas geneticamente para ser magérrimas – e saudáveis. O desejo de emagrecer também não resulta sempre em anorexia. Se fosse assim, o mundo estaria repleto de anoréxicos e bulímicos. Uma pessoa sem predisposição a essa combinação de distúrbios poderia até induzir o vômito uma ou duas vezes, para não engordar, mas a sensação lhe causaria tanto desconforto e mal-estar que dificilmente se transformaria em hábito. Para as vítimas de anorexia e de bulimia, a fome e o vômito são experiências de alívio – às vezes, até de prazer.

Uma das características mais marcantes dessa doença é que a paciente não tem uma visão clara de si mesma. Ela invariavelmente acha que está gorda, ainda que sua aparência seja cadavérica. "Há estudos em que as vítimas da doença devem apontar uma foto de mulher com a qual mais se identificam. Elas sempre apontam a imagem de uma pessoa gorda", diz Lucia Helena Grando, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo, autora de uma tese de doutorado sobre o assunto. Lucia Helena já chegou a atender o caso de uma menina de 15 anos que tomava vinte comprimidos de laxante por dia e pesava 21 quilos. "A garota não tinha mais dentes, seu cabelo era ralo e ela já não conseguia andar", lembra. A coleção de sintomas causados pela anorexia é enorme: hipotensão, hipotermia, redução da atividade da tireóide, suspensão da menstruação, unhas e cabelo quebradiços, pele ressecada, áspera e coberta por lanugo (uma penugem fina e escura que pode chegar a cobrir todo o corpo). Para se ter uma idéia, a pressão arterial das pacientes fica na casa dos 8 por 4 (o normal é 12 por 8). Seu ritmo cardíaco é, em média, de 36 batimentos por minuto, quando o esperado é de 60 a 80. Um dado muito assustador é que o mercúrio do termômetro não sai do lugar quando se mede a temperatura das anoréxicas.

"Para minha mãe não perceber minha magreza, eu usava quatro, cinco calças, uma em cima da outra, para disfarçar", diz a paulistana Rafaela Sanches, de 22 anos. Em 2004, ela chegou à marca de 36 quilos distribuídos em 1,70 metro. Hoje em tratamento, Rafaela conta que escondeu a anorexia quanto pôde. "Quando minha mãe me pegou por acaso trocando de roupa, levou um susto. Ela não fazia a menor idéia do que se passava comigo." A alimentação de Rafaela resumia-se a água, queijo branco, leite desnatado e alface. Ela ia duas vezes por dia à academia e fazia abdominais de madrugada para ninguém perceber. "Na faculdade, eu tinha uma cadeira especial com almofada, porque não agüentava a dor nos ossos", lembra. "Ainda assim, eu me olhava no espelho e me achava gorda. Tomava laxantes, diuréticos e chás emagrecedores o dia inteiro." Por causa da doença, Rafaela desenvolveu osteoporose, um mal típico da meia-idade. Atualmente, ela pesa 48 quilos e não quer passar disso. "Mesmo curada, uma ex-anoréxica não se livra totalmente da relação complicada com a comida", diz a psiquiatra Angélica Claudino. O tratamento é dificílimo. A taxa de recaída é alta, em torno de 60%. A terapêutica ideal prevê uma equipe composta de psiquiatra, psicólogo e nutricionista. Normalmente, o trabalho é feito com a ajuda de antidepressivos. Mas dois estudos americanos recentes mostraram que esses medicamentos não são efetivos para tratar a anorexia nem para evitar as recaídas – eles parecem ajudar apenas as que apresentam um quadro de bulimia. Os tratamentos disponíveis até agora, que misturam psicoterapia e reeducação alimentar, levam à cura de até um terço das pacientes com anorexia. Outros 30% passam a viver num vaivém de sucessos e recaídas. O restante afunda na anorexia crônica, que as coloca sob alto risco de suicídio e morte por inanição. Foi o caso de Ana Carolina.

ESCRAVA DE SI MESMA

Jim Mone/AP
A americana Marya Hornbacher: no auge da doença, 23 quilos, seis internações e tentativa de suicídio

Começou de repente, sem nenhum motivo aparente. "Num minuto eu era a menina-padrão de 9 anos. No minuto seguinte, estava entrando no banheiro, fechando a porta, segurando as tranças com uma das mãos, enfiando dois dedos na garganta e vomitando até cuspir sangue." A descrição é da americana Marya Hornbacher, de 32 anos, que aos 23 escreveu a autobiografia Dissipada, lançada no Brasil pela Editora Record. É a história de uma longa batalha contra a anorexia e a bulimia. As memórias de Marya lançam luz sobre as causas mais evidentes dos distúrbios alimentares – os traços de personalidade que conduzem ao problema, o histórico familiar complicado e as influências culturais que impõem a ditadura da magreza. "Muita gente se move perfeitamente entre a bulimia e a anorexia, dividida entre dois amantes. Foi o que fiz", conta. Ao longo de treze anos, ela oscilou entre 23 e 61 quilos – seu peso aumentava um pouco, depois caía em queda livre. Foi hospitalizada seis vezes. Aos 12 anos, estava vomitando quase que diariamente havia pelo menos três. Fazia isso de duas a três vezes por dia. Aos 15 anos, estava anoréxica. Marya abusou de estimulantes e álcool, usou drogas pesadas e teve episódios de automutilação. Em 1994, aos 20 anos, tentou suicídio.

"No chuveiro, ficava sentindo os ossos na parte inferior das minhas costas. Eu segurava meus ossos pélvicos como se fossem machadinhas gêmeas", relembra. Numa das descrições mais impressionantes, ela conta alguns artifícios usados para vomitar sem ser notada e até para saber quanto de comida estava pondo para fora: "Ligo a torneira no máximo para encobrir as ânsias e o barulho do vômito, torcendo muito para que as paredes sejam grossas e ninguém consiga ouvir nada". Marya relata, ainda, como usava um tipo de salgadinho para saber se havia vomitado toda a comida ingerida pouco antes: "Os Doritos. Você os come primeiro para saber se tudo saiu". Para simular a sensação de saciedade e ao mesmo tempo manter o peso baixo, Marya bebia litros e litros de água. No auge do descontrole, comia apenas 320 calorias por dia, metade do reservado aos presos nos campos de concentração nazistas. "A certa altura, um transtorno alimentar deixa de ser 'por causa de' alguma coisa. Deixa de ser por causa da sua família ou da sua cultura. Muito simplesmente, ele se torna um vício não apenas emocional, mas químico." Escrava de si mesma, ela conseguiu finalmente escapar desse círculo aprisionante. "Cansei de ser tão chata. Ocorreu-me que era clichê morrer de fome. Todo mundo estava fazendo a mesma coisa", escreve. Marya não se considera curada. Diz que ela e a doença convivem num estado de antagonismo mútuo, num enfrentamento permanente. Com uma diferença em relação ao passado: "Sou capaz de viver dia após dia, independentemente do fato de, numa manhã, ter a impressão de que o meu traseiro aumentou drasticamente durante a noite".


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