Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 19, 2006

Miriam Leitão Preço da ousadia

Se o presidente Lula quiser, de fato, ousar, há muito trabalho a fazer. Ele tem que desamarrar o orçamento, hoje todo vinculado; tem que cortar o gasto com a máquina e investir mais; mudar a Previdência como nunca foi tentado nas reforminhas feitas; fazer uma reforma administrativa que permita ao governo demitir se quiser e precisar. Tem que tirar o imposto sobre a folha salarial e inverter o gasto com educação.

Se o empresário brasileiro contrata um funcionário, paga muito imposto; se compra uma máquina, paga bem menos. O presidente Lula está querendo reduzir mais o imposto sobre o investimento. É justo, mas o país tem que parar de punir quem emprega. Muita gente está sem emprego ou na informalidade, e 1,5 milhão de jovens chegam anualmente ao mercado. O Brasil precisa de empregos.

O governo gasta demais, mas, em todo lugar, falta dinheiro. Falta dinheiro para o controle de tráfego aéreo, por exemplo. O Estado é perdulário e, ao mesmo tempo, sovina. Portanto, mais que cortar, é preciso reformar o gasto. Todos choram, mas nem todos são prioritários. Há setores em que o desperdício é brutal. Há de tudo nesse Estado ineficiente.

Para reformar o gasto, é preciso um lance de enorme ousadia que significa brigar com todos os lobbies. Como falta dinheiro para tudo, cada grupo juntou seu lobby e aprovou uma lei vinculando uma parte da receita ao seu setor. A Saúde fez mais: aprovou uma lei em que sua parcela do gasto é corrigida anualmente. Assim, vai abocanhando cada vez mais. Se há uma emergência, uma epidemia, aprova-se um gasto extra e, quando acaba a doença, o gasto fica. Se desvinculasse o orçamento, o presidente conseguiria governar. Hoje tudo o que um presidente consegue é pôr o dinheiro na área já pré-determinada, e governar com um restinho.

O governo Lula faz uma sucessão de concursos públicos. Contratou 50 mil novos funcionários e vai contratar mais. A febre contaminou os outros poderes. Esses concursos estão contratando novas pessoas, mas a relação trabalhista permanece a velha: quem entra está com a vida feita, não pode ser demitido e, um dia, ainda jovem, vai se aposentar pelo salário integral. Outro dia, ouvi uma conversa entre jovens concursandos: um dizia que queria passar porque, assim, poderia ficar em casa; outro dizia que poderia fazer o mestrado; outro achava que toda a incerteza acabaria. O sangue novo que está sendo injetado nas veias do Estado esclerosado vai sendo contaminado pela mesma doença. Eles não são demissíveis, têm vantagens inaceitáveis no mundo de hoje. Tem uma empresa do governo que dá 15 dias de licença quando nasce o neto das funcionárias, outra tem o auxílio-sogra. O patrão governo não tem como atender ao seu cliente, gasta tudo em casa mesmo.

Os desequilíbrios salariais nunca foram sanados e aumentam com a liberdade dada aos outros poderes. O salário inicial no Ministério Público é de R$ 20.000. O salário inicial de um jornalista do Senado pode chegar a R$ 11.000. O salário de um controlador de vôo militar não chega a R$ 3.000. Faz sentido?

O Brasil é jovem, mais de 90% dos brasileiros têm menos de 60 anos, e a previdência já quebrou. O Estado tem que garantir um valor teto para todos, estabelecer uma idade mínima igual para ambos os sexos e mais condizente com o fato de que a expectativa de vida aumentou 15 anos nos últimos 30 anos. O país já fez três reformas da previdência e nenhuma mudou o quadro falimentar do sistema de aposentadorias. São tímidas, medrosas. Se quiser ser mesmo ousado, o presidente precisa ouvir o que disse o ministro Tarso Genro, num dia de extrema lucidez, e enfrentar os chamados "direitos adquiridos". Eles são, na maioria das vezes, privilégios. Há questões que a Justiça pode barrar, mas está na hora de se pedir à Justiça que não eternize o passado de injustiças do país. Como ocorreu quando o Plano Real acabou com a hiperinflação e a Justiça, enfim, entendeu que inflação não era direito adquirido, era um flagelo nacional.

O presidente, se quiser ousar, deve rever as indenizações políticas. O que um dia foi visto como reparação virou um trem da alegria. As decisões da Comissão de Mortos e Desaparecidos foram razoáveis, mas a Comissão de Anistia tomou decisões extravagantes, como dar R$ 1,5 milhão e mais R$ 10 mil por mês até o fim da vida a uma pessoa que foi demitida por um órgão do Estado e logo depois contratada por outro órgão do Estado. Não é só um caso. Há vários, e gente que ganhou até mais que isso. Há pedido de indenização por fato que aconteceu em 1987, quando a ditadura já havia acabado. Ao todo, os atrasados já somam R$ 4 bilhões; e podem aumentar.

Na educação, o governo gasta 12 vezes mais per capita com o estudante do ensino superior que com o aluno do fundamental. O ensino médio foi esquecido. O presidente teria idéias bem ousadas se perdesse um pouco de tempo lendo as comparações internacionais do gasto em educação, de diversos países, feitas pela OCDE. Poderá ver a concentração de renda em ação.

Há muito a fazer se o governo decidir ousar. Só não há uma coisa: ousadia indolor. Para mudar o Brasil, é preciso ferir interesses; alguns fingindo ser do povo e com discurso de esquerda. Se for ousado, Lula talvez não seja eleito para mais nada neste país, mas ganha uma passagem para a História.

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