Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, novembro 03, 2006

Merval Pereira - A imprensa e o poder




O Globo
3/11/2006

A condenação do sociólogo e jornalista Emir Sader por crime de injúria, por um artigo que escreveu em agosto passado no site Carta Maior, é um ótimo pretexto para retomarmos a discussão sobre liberdade de imprensa. O professor Sader acusou o senador Jorge Bornhausen, presidente do PFL, de ser racista por ter dito que o país precisa "se ver livre dessa raça por 30 anos", referindo-se aos petistas.

No referido artigo, além racista, Sader chamou Bornhausen de "fascista", "direitista", "adepto das ditaduras militares", "repulsivo", "pessoa abjeta", "roubador", "explorador e assassino de trabalhadores". O senador Jorge Bornhausen, sentindo-se ofendido pelo autor do artigo, procurou na Justiça defender seus direitos de cidadão.

Alega que usou "esta raça" com o sentido de grupo de indivíduos da mesma categoria, uma das definições de raça dos dicionários. Sader foi condenado por injúria pelo juiz Rodrigo Cesar Muller Valente, da 11ª Vara Criminal de São Paulo, à pena de um ano de detenção, substituída por prestação de serviços à comunidade ou entidade pública. O juiz aplicou uma pena adicional de perda do cargo ou função pública - professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - por Emir Sader ter se utilizado do cargo para difundir suas injúrias. Há um movimento em defesa do sociólogo, militante petista de longa data, e vários manifestos a seu favor alegam que a pena é um ataque à "livre-manifestação".

Até a CUT entrou na discussão, alegando que vários jornalistas caluniaram e injuriaram o presidente da República e membros do governo. Aí está a diferença entre uma tentativa de cerceamento da liberdade de imprensa, que foi o que a Polícia Federal fez ao convocar jornalistas da revista "Veja" para um depoimento, e a ação da Justiça contra jornalistas que se utilizam dos meios de comunicação para caluniar ou injuriar alguém.

O senador Bornhausen pode ser criticado - e já o fiz aqui na coluna - pela agressividade política de sua frase, mas se alguém se sentisse caluniado por ela, deveria procurar a Justiça, e não tentar transformar uma frase infeliz ou mesmo agressiva, em um crime de racismo. As opiniões políticas do sociólogo sobre o senador não foram condenadas pela Justiça.

Qualquer jornalista está sujeito às mesmas leis do país e deveria ser processado sempre que alguém se julgasse caluniado ou injuriado por um artigo ou uma reportagem. Nada impede a "livre-expressão", mas os autores devem ser responsáveis pelas conseqüências de suas opiniões. Há, inclusive, uma Lei de Imprensa, resquício da ditadura militar, que está em vigor, quando as leis comuns deveriam ser suficientes.

O diretor-geral da Polícia Federal, Paulo Lacerda, reconduzido ao cargo pelo presidente eleito, reagiu com uma insuspeitada arrogância às críticas ao delegado que constrangeu os jornalistas de "Veja". "A PF deve ser censurada em seus questionamentos? Isso pode perguntar, aquilo não pode perguntar?", perguntou ele, como se fosse impensável alguém tentar pôr limites na ação policial.

Pois na democracia é assim mesmo, um delegado de polícia não tem o direito de perguntar qualquer coisa a uma pessoa, muito menos quando essa pessoa não está sendo acusada de nada oficialmente, nem responde a processo. Só nas ditaduras o poder policial é ilimitado. Na democracia é a sociedade que dá os limites dos poderes públicos.

Aproveitando o tema, um leitor enviou um texto do jornalista norte-americano Jack Anderson, no prólogo do livro "Os Arquivos de Anderson" ("The Anderson Files"), por Jack Anderson e George Clifford, editado pela Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1974. Jack Anderson tinha uma coluna publicada em cerca de mil jornais no seu auge.

Considerado o pai do jornalismo investigativo nos Estados Unidos, ganhou o Prêmio Pulitzer em 1972 por revelar ações secretas do governo Nixon a favor do Paquistão na guerra contra a Índia, e também publicou as transcrições secretas do grande júri sobre o caso Watergate. Era considerado por Kissinger como "o homem mais perigoso dos Estados Unidos" e membros do governo Nixon confessaram que houve um complô na CIA para assassiná-lo.

No prólogo, Jack Anderson nos dá lições sobre o poder e a imprensa: "(...) Um número enorme de jornalistas credenciados [em Washington] considera ser sua função cortejar os fortes, e não condená-los; louvar os homens públicos, e não desmascará-los. (...) A necessidade de a imprensa ocupar um lugar antagônico foi percebida com clareza pelos fundadores da América. Por isso, tornaram a liberdade de imprensa a primeira garantia da Carta de Direitos. Sem liberdade de imprensa, sabiam, as outras liberdades desmoronariam. Porque o governo, devido à sua própria natureza, tende à opressão. E o governo, sem um cão de guarda, logo passa a oprimir o povo a que deve servir.

(...) Thomas Jefferson entendeu que a imprensa, tal como o cão de guarda, deve ter liberdade para criticar e condenar, desmascarar e antagonizar. 'Se me coubesse decidir se deveríamos ter um governo sem jornais, ou jornais sem um governo, não hesitaria um momento em preferir a última solução', escreveu ele. (...) Tampouco se desdisse depois que, como presidente, foi destratado por jornais irresponsáveis. Ao invés disso, ao aproximar-se o fim de sua primeira gestão, escreveu a um amigo: 'Nenhuma experiência pode ser mais interessante do que esta que estamos agora tentando, e que confiamos acabará por comprovar que os homens podem ser governados pela razão e pela verdade. Nosso objetivo primordial deve ser, por conseguinte, manter-lhes abertos todos os caminhos da verdade. O caminho mais eficiente até hoje encontrado é a liberdade da imprensa. Por isso, é o primeiro a ser fechado por aqueles que receiam a investigação de suas ações'".

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