Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 11, 2006

Café: o grão que mudou o mundo

O grão que mudou
o mundo

A chegada da Starbucks
ao Brasil é apenas o lance
mais recente da fascinante
história de 500 anos do café


Marcio Aith



Deve-se ao café, uma mistura escura feita com grãos importados do Oriente Médio, a dissipação da névoa alcoólica sob a qual a Europa permaneceu até o século XVII. Antes disso, habitantes das cidades européias, cada vez mais sujas e lotadas, se entupiam de cerveja, vinho e destilados para fugir da contaminação da água – entre outras finalidades, é claro. Bebia-se álcool pela manhã e nas demais refeições do dia, num clima permanente de confusão mental e aversão ao trabalho. Feito com água fervida, assim como a cerveja, o café passou a ser uma alternativa ao álcool não apenas segura, mas capaz de oferecer energia e acuidade de pensamento jamais proporcionadas por qualquer outro alimento.

Um poema anônimo inglês publicado em 1674 e recuperado pelo editor da The Economist e estudioso de bebidas Tom Standage (autor de a História do Mundo em 6 Copos) resumia assim o impacto do café no Velho Continente: o vinho "é um doce veneno que inunda nossa própria razão e nossas almas"; a cerveja é uma "obscura bebida forte que sitia nossos cérebros"; já o café é o "líquido grave e saudável que cura o estômago, faz o gênio mais rápido, ajuda a memória, reanima o triste e anima os espíritos, sem trazer loucura". A menção à cura do estômago foi infeliz – na verdade, apesar das pesquisas recentes que reforçam as qualidades benéficas do café (veja reportagem), a bebida em exagero lesiona a parede do órgão responsável pela digestão. Mas o poeta anônimo acertou no resto. Foi justamente o poder de acuidade a distinção que alçou o café e as cafeterias a, respectivamente, símbolo gastronômico e palco do iluminismo e de quase todas as revoltas políticas, movimentos de escritores e debates intelectuais que se seguiriam. A bebida foi adotada por cientistas, escritores, burocratas, comerciantes e demais operários mentais. Com isso, transformou-se no produto mais cobiçado do mundo e, ainda que tenha perdido o título para o petróleo no último século, é o segundo mais negociado atualmente.

Nas últimas três décadas, uma companhia americana escreveu o capítulo mais recente da fascinante história do café: a Starbucks, uma rede de cafeterias que nasceu em 1971 na cidade de Seattle, na Costa Oeste americana, como um pequeno ponto-de-venda do produto em grãos de alta qualidade. Desde então, abriu 12.440 lojas em 37 países e conquistou cerca de 40 milhões de freqüentadores semanais. A exemplo da conexão histórica entre os cafés parisienses e os movimentos sociais, a Starbucks cresceu associada à cultura de nossos dias, da qual, estrategicamente, se alimenta. Com sofás e funcionários receptivos, um amplo serviço de conexão wireless à internet e café de qualidade, a companhia forjou uma relação emocional com usuários de iPods e notebooks. Passou a simbolizar com isso o modo de vida contemporâneo dos americanos. Além disso, tomou o lugar do McDonald's como símbolo da força expansionista do capitalismo: uma nova loja é aberta em média a cada quatro horas, e a companhia já consome 40% de toda a produção de café de qualidade no mundo.

Nas próximas duas semanas, a marca começa a ser testada no Brasil, país que lidera há dois séculos a produção mundial de café e cuja história política, econômica e social sempre esteve vinculada a ciclos de preços do produto (veja reportagem). Duas lojas serão inauguradas no MorumbiShopping, na Zona Sul de São Paulo, e, dependendo do movimento inicial, outras cinco poderão ser abertas ainda no primeiro semestre de 2007. Se a Starbucks tiver no Brasil a mesma ascensão verificada no México, nas Filipinas ou na Coréia do Sul, ao menos uma centena de lojas poderá ser inaugurada nos próximos três anos. Essa estratégia da companhia, de multiplicar-se para conquistar, foi levada a ferro e fogo nos EUA. A Starbucks está em todo lugar: há mais lojas por habitante em várias cidades americanas do que pizzarias em São Paulo; seu logo povoa dezenas de filmes de Hollywood; em breve a marca estará no título de um blockbuster estrelado pelo ator Tom Hanks ("Como a Starbucks Salvou Minha Vida"); nomes extraídos de seu cardápio já fazem parte da cultura pop do fim do século XX e início do século XXI. Uma frase atribuída à atriz americana Janeane Garofalo retrata com humor a ubiqüidade da marca nos EUA: "Eles acabaram de abrir mais uma loja da Starbucks. Na minha sala".

Lailson Santos
Maria Luisa Rodenbeck, responsável pela implantação da Starbucks no Brasil: uma década de negociações


Mas qual é o verdadeiro segredo da empresa? Muitos livros e teses já foram escritos sobre o assunto. Há quem diga que ele se baseia única e exclusivamente no conforto das lojas e na arte de convencer os consumidores a comprar, por 3 dólares, um cafezinho de 1 dólar. Esse retrato não faz jus à engenhosa logística da companhia nem à qualidade do café, selecionado incessantemente por especialistas numa base em Lausanne, na Suíça. A Starbucks paga mais caro pelos grãos que compra com o objetivo de fidelizar produtores, garantir que eles incorporem critérios socioambientais e realizem o plantio com metodologias que considerem a conservação da biodiversidade e suas condições de sobrevivência – em suma, um leque de ações sociais feitas, em parte, para vencer a forte resistência cultural e ideológica à sua expansão. Mas o principal objetivo do sobrepreço pago aos produtores é assegurar o suprimento e criar marcas que fiquem gravadas na mente dos consumidores (Colombia Nariño, Costa Rica Tarrazú, Ethiopia Sidamo, Ipanema Bourbon e Kenya são algumas delas).

A Starbucks adotou, na década de 80, uma estratégia similar à da Apple: introduziu, na vida dos americanos, uma necessidade que não existia – no caso da Apple, aparelhos inovadores; no da Starbucks, bom café num ambiente acolhedor e moderno. Aliás, tão acolhedor e moderno que os consumidores da Starbucks pagariam até pelo ar que respiram, desde que pudessem passar horas lendo jornais e revistas nas lojas. Em entrevista a VEJA, Ernesto Illy, presidente honorário da torrefadora italiana Illycaffè e símbolo de café de qualidade em todo o mundo, assim definiu sua concorrente: "A Starbucks percebeu que os jovens americanos queriam um lugar para se reunir como se fosse a sala de casa, mas longe da vigilância dos pais, e criou suas cafeterias com esse aspecto. Foi uma jogada muito inteligente". Verdade seja dita, não há só jovens entre os freqüentadores da Starbucks. A média de idade deles é de 42 anos.

Fernando Moraes
A cafeteria Santo Grão, em São Paulo: disputa pelo consumidor que paga por qualidade

Nos EUA, a Starbucks se transformou em um terceiro ambiente de convívio. "Os americanos têm a casa, o trabalho e a Starbucks", gosta de dizer Howard Schultz, atual presidente do conselho de administração da empresa (veja a entrevista). Schultz é o principal responsável pela transformação de uma pequena loja de venda de grãos de boa qualidade em Seattle na maior rede de cafeterias do planeta. Mas ele não foi um dos fundadores. O feito foi de Jerry Baldwin, Zev Siegl e Gordon Bowker, que tiraram o nome Starbucks do clássico Moby Dick, de Herman Melville (1819-1891). Schultz conheceu-os por acidente quando trabalhava para uma empresa sueca de utensílios domésticos. "Notei um fenômeno estranho: um pequeno varejista de Seattle fazia, excepcionalmente, um número superior de pedidos para certo tipo de máquina de coar café, em quantidade superior à da Macy's", contou ele em sua biografia autorizada (Dedique-se de Coração, da Editora Elsevier). Ao visitar a companhia, Schultz tornou-se amigo de Baldwin e conseguiu virar sócio da empresa em 1982, apesar da resistência dos outros dois sócios. Na ocasião, tentou, sem sucesso, transformá-la numa rede de cafeterias. Só atingiu seu objetivo em 1987, quando, com a ajuda de um grupo de investidores, adquiriu o controle da empresa e imprimiu a ela seu perfil atual.

A experiência internacional positiva, o gigantesco mercado local e a expectativa dos brasileiros conspiram a favor da Starbucks no Brasil. Até hoje, a marca só fracassou num único país, Israel. Não por rejeição dos consumidores ou preços exagerados, mas por desentendimentos com o sócio local. No Brasil a Starbucks escolheu como sócia a administradora Maria Luisa Rodenbeck, casada com Peter Rodenbeck, empresário responsável pelo desembarque, no Brasil, da marca McDonald's (na década de 80) e da cadeia americana de restaurantes Outback (nos anos 90). Coube a Maria Luisa explicar aos executivos da Starbucks as vicissitudes do mercado brasileiro e a miríade regulatória do país. Durante meses, a empresária e os executivos também desenvolveram o Brasil Blend, a primeira mistura de cafés brasileiros criada pela Starbucks. Ela foi feita para replicar o sabor do cafezinho bebido em xícaras pequenas pelos brasileiros, que, em geral, adoçam a bebida com açúcar. "O Brasil Blend é uma expressão de respeito e um gesto de carinho da Starbucks pelos mais finos cafés do Brasil", diz Maria Luisa.

Fabiano Accorsi
David Mcnew/Getty Images
Para Ernesto Illy (à esq.), símbolo do café de qualidade, a Starbucks soube atrair os jovens. À direita, loja na Califórnia em que os clientes "queimam" CDs de música enquanto saboreiam um tall latte

Para adaptar-se ao gosto do consumidor brasileiro e concorrer com as 42.000 padarias do país, a Starbucks incorporou ao cardápio outras novidades – aliás, uma rara concessão dos controladores da rede. Entre elas, pães de queijo, muffins salgados e croissants de catupiry. O cardápio também vai manter os nomes em inglês – o que exigirá, de início, um esforço dos cinqüenta baristas contratados para explicar de que tratam e como pedir os produtos. Fica a dúvida se vai pegar por aqui a pronúncia americana usada, por exemplo, para comprar o expresso com leite e espuma na menor versão oferecida (o tall latte). Os americanos pronunciam algo como "ei tol latê". Já os preços foram fixados em um patamar muito abaixo do que se cogitava. A idéia foi calibrá-los de modo a remunerar o investimento sem afugentar os consumidores. "Quem acha que nossos preços não serão competitivos cairá do cavalo", diz Maria Luiza. VEJA teve acesso à lista de alguns deles. O expresso simples custará 2,50 reais – abaixo do valor cobrado pelas cafeterias mais luxuosas, mas acima do das redes populares. Só a realidade dirá se essa calibragem foi bem-feita. A julgar pelo sucesso da empresa em países com renda per capita mais baixa que a brasileira (Peru e Filipinas, por exemplo), são boas as chances de aceitação. A conferir.

ALÉM DO AROMA

A rede Starbucks começou como um pequeno ponto-de-venda de café em grãos em Seattle. Em três décadas, transformou-se num conglomerado de 28 bilhões de dólares que mudou hábitos de consumo e passou a simbolizar o modo de vida americano

FUNDAÇÃO – 1971*

LOCAL – Seattle, Estado de Washington, EUA

NÚMERO ATUAL DE LOJAS – 12 440

EXPANSÃO – 6 novas lojas por dia

PRESENÇA NO MUNDO – 37 países

NÚMERO DE CLIENTES – 40 milhões por semana

FORÇA DE TRABALHO – 117 000 empregados

VALOR DE MERCADO – 28 bilhões de dólares

FATURAMENTO EM 2005 – 6,4 bilhões de dólares

PRINCIPAIS CONCORRENTES NOS ESTADOS UNIDOS – Dunkin'Donuts e McCoffee

"VENDO MUITO MAIS DO QUE CAFÉ"

Divulgação


Filho de um motorista de caminhão, Howard Schultz é um judeu nova-iorquino que cresceu em um conjunto habitacional para famílias de baixa renda no bairro do Brooklyn. Em 1982, virou sócio da Starbucks, então uma pequena rede que vendia café em grãos em Seattle. Cinco anos depois, adquiriu o controle da empresa com a ajuda de um grupo de investidores, transformou-a numa rede de cafeterias e deu início à ascensão meteórica da marca. Schultz, 53 anos, falou a VEJA na sede da companhia, um antigo armazém da Sears na região portuária de Seattle.

POR QUE A STARBUCKS DEMOROU TANTO PARA CHEGAR AO BRASIL?
Não foi por falta de entusiasmo. O Brasil esteve em nossa lista de prioridades por quase uma década devido ao gigantismo de seu mercado e ao fantástico legado do café brasileiro. O problema é que os países onde já atuávamos se revelaram muito mais promissores do que inicialmente imaginávamos, o que atrasou a abertura de novos mercados. Tome-se o exemplo do México. No princípio achávamos que teríamos, no máximo, algumas dezenas de lojas. Acabamos abrindo 101 em apenas três anos. Também custamos a definir o parceiro perfeito no Brasil e fizemos questão de aprender, com a experiência de outras companhias americanas, as idiossincrasias regulatórias e a essência do consumidor brasileiro antes de fincar pé no país. Demoramos, mas chegamos para ficar.

O NÍVEL DE RENDA DA MAIORIA DOS BRASILEIROS É BAIXO EM COMPARAÇÃO AO DOS PAÍSES ONDE VOCÊS ATUAM. PODE-SE DEDUZIR QUE NO BRASIL VOCÊS VÃO MIRAR EM UM PÚBLICO SELETO?
Essa mesma indagação surgiu quando iniciamos as atividades no México, nas Filipinas e no Peru. Havia a percepção de que nossos preços eram muito altos para os padrões locais. No entanto, a base de consumidores mexicanos não pára de crescer nas faixas mais baixas de renda. Nosso café é um produto luxuoso, mas de preço acessível. Essa combinação atrai também os consumidores de menor poder de compra. Não vendemos apenas café de boa qualidade. Vendemos suavidade, estilo e aconchego em um mundo cada vez mais complicado. Isso funciona. A população filipina é metade da brasileira e a renda per capita, menor. Ainda assim, temos 98 lojas nas Filipinas.

SEUS CRÍTICOS DIZEM COM IRONIA QUE, NA VERDADE, VOCÊS CONSTRUÍRAM UM IMPÉRIO CONVENCENDO OS CONSUMIDORES A PAGAR 5 DÓLARES POR UMA BEBIDA QUE NÃO CUSTA MAIS DO QUE 1 DÓLAR...
Essa é apenas uma das maldades inventadas a nosso respeito. Nossos preços refletem a qualidade dos produtos e o cuidado que temos para oferecê-los em um ambiente acolhedor. Nós somos cuidadosos, estimulamos e financiamos o plantio de café com metodologias que respeitam a biodiversidade e as condições de vida dos agricultores. Além disso, temos 117 000 funcionários que, em sua esmagadora maioria, dispõem de planos de saúde gratuitos. Este último ponto, aliás, é um capítulo à parte. Em 2006, pela primeira vez, o custo dos planos de saúde de nossos funcionários nos Estados Unidos será maior do que o preço que pagaremos para comprar todo o estoque de café para o mercado americano. Não devemos nos desculpar pelos preços que cobramos.

COMO A WAL-MART EM SUA ASCENSÃO METEORICA, A STARBUCKS FOI ACUSADA DE ASFIXIAR CONCORRENTES MENORES...
Não, ocorreu o inverso. Não podemos ser acusados de asfixiar um negócio que mal existia, ao menos nos Estados Unidos. Na verdade, ajudamos a criar um novo mercado. Apareceram milhares de cafeterias, de outras redes, que também oferecem um bom café. Antes da Starbucks, os americanos bebiam um café de péssima qualidade. Hoje temos competidores em todos os lugares. Nossa vantagem comparativa, porém, é a cultura empresarial.

QUE COMPANHIA O SENHOR MAIS ADMIRA?
Gosto do estilo e da elegância da Nike, da onipresença e da qualidade dos produtos da Ikea (rede sueca que é líder mundial de varejo de móveis) e da logística primorosa da Zara (rede espanhola de varejo de roupas). Mas talvez a história mais semelhante à nossa seja a da Apple. Não só pela conexão emocional com os consumidores, mas também porque oferece produtos dos quais o público nem sabe que precisa.

O MERCADO DE CAFETERIAS NÃO ESTÁ SATURADO?
Não chegamos à metade do potencial de mercado nos EUA, quanto mais no mundo. Prova disso é o aumento crescente e ininterrupto do faturamento de nossas lojas mais antigas. Nossa meta para os próximos anos é atingir 25 000 lojas, Hoje, temos 12 440.

COMO TEM SIDO A EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL DA STARBUCKS?
Abrimos a primeira loja no exterior há dez anos. Foi no Japão. Tóquio já tinha cafés em quase todas as esquinas. Enfrentamos um concorrente poderoso, com mais de 500 lojas. Tudo parecia conspirar contra o nosso sucesso. Os analistas diziam que ia dar errado, que os aluguéis eram muito caros, que os japoneses se recusavam a carregar bebidas e alimentos para viagem. Bem, já temos 660 lojas no Japão. Isso nos deu confiança. Se fizemos sucesso no Japão, podemos fazê-lo em qualquer lugar.

ATÉ NA CHINA?
Os resultados têm sido mais do que satisfatórios. A China é minha maior obsessão. Abrimos a primeira loja em Pequim em 1999. Desde então, temos mais de 400 pontos-de-venda, incluindo Hong Kong e Taiwan. Criamos uma relação única com os jovens chineses dos grandes centros urbanos. Mas isso é só o começo. Pesquisas internas indicam que há 250 milhões de chineses com nível de renda, aspirações e estado de espírito compatíveis com nossa cultura. Em suma, existe praticamente uma população americana inteira esperando por nós.

RESISTÊNCIA CULTURAL VOCÊS DEVEM TER ENFRENTADO MESMO É NA EUROPA, NÃO?
Foi justamente em uma viagem à Itália, em 1983, que encontrei inspiração para transformar a Starbucks. Foi em um dos milhares de pequenos bares aconchegantes de café expresso de Milão. Abrir uma Starbucks na Itália é um desafio para o qual ainda não estamos prontos. Vai levar mais tempo. Mas já somos um sucesso no Reino Unido, onde temos 520 lojas, e em outros dez países europeus. Nossa estréia na França, em 2004, foi precedida de muitas críticas e ataques pessoais. Fomos retratados como monstros capitalistas. A imprensa francesa nos massacrou – a mim, em especial. No entanto, quando abrimos a primeira loja, ficou claro que, apesar do cinismo com que fomos recebidos, os consumidores só estavam interessados em saber se nosso café era de boa qualidade e se as lojas eram mesmo agradáveis. Fomos aprovados pelos franceses.

M.A.

Qualidade vale ouro no campo

Maior produtor mundial há dois
séculos, o Brasil só agora descobre
o café especial


Chrystiane Silva

Fotos Fabiano Accorsi, Carol Carquejeiro/Valor EconÔmico/Ag. Globo e Roberto Setton

Washington Rodrigues (à esq.), da Ipanema Coffees, a barista Isabela Raposeiras (acima) e Luís Norberto Pascoal (ao lado), da Fazenda Da Terra: qualidade por trás de cada cafezinho



Há algumas versões para a chegada do café ao Brasil. A mais provável diz que as primeiras mudas foram surrupiadas do governo da Guiana Francesa e trazidas ao Brasil pelo sargento Francisco de Mello Palheta ao Pará, em 1727. A planta, originária da Etiópia, adaptou-se maravilhosamente ao clima e ao solo brasileiro. Já no século XVIII, o Brasil aparecia como grande produtor mundial de café. Desde então o país nunca perdeu o posto. O Brasil exporta basicamente o grão bruto, e não o produto já industrializado, com maior valor agregado. Da safra de 41 milhões de sacas neste ano, só 5% serão de qualidade superior. Curiosamente, os maiores exportadores mundiais de café processado industrialmente são a Alemanha e a Itália, que não plantam nenhum pé – eles compram os grãos de outros países, processam, colocam suas marcas e vendem para todo o mundo. Quando os compradores internacionais mais exigentes buscam qualidade, em geral procuram produtos originários do Vietnã, da Colômbia ou de países da América Central. Mas esse fenômeno está mudando. Começa a surgir uma nova safra de produtores interessados em elevar a qualidade do grão cultivado aqui. Paralelamente, os próprios consumidores brasileiros passaram a se preocupar mais com o sabor do cafezinho.

Diariamente, mais de 90% dos brasileiros bebem ao menos uma xícara de café. O Brasil é o segundo maior consumidor mundial, atrás apenas dos Estados Unidos. Somente nas 52.000 padarias do país estima-se que sejam vendidos 131 bilhões de xícaras de café ao ano. Quem prefere um expresso bem tirado, no entanto, vai a uma das 2.500 cafeterias do país, cada vez mais concorridas e que agora disputarão os fregueses com a rede americana Starbucks. Segundo uma pesquisa da Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic), que ouviu 1.300 pessoas no Brasil, em 2003 apenas 9% dos brasileiros freqüentavam cafeterias. No ano passado, o índice havia subido para 29%.

Apesar de ser sinônimo de café, o Brasil nunca teve uma tradição em cafeterias, como a França, a Itália e a Argentina. Quando o neozelandês Marco Kerkmeester deixou a empresa americana de informática IBM, decidiu que queria trabalhar com algo que reunisse gente interessante ao seu redor. Casado com uma brasileira, Kerkmeester percebeu que não havia no país cafés em que o cliente se sentisse à vontade, num ambiente descontraído e agradável, como a sala de estar da sua casa. Abriu o Santo Grão, em São Paulo, que, além de cafés especiais, serve refeições durante o almoço e o jantar e oferece cursos de degustação. História semelhante é a de Marco Suplicy, que, depois de trabalhar vinte anos no mercado financeiro, passou a se interessar pelo negócio – afinal, estava no sangue, sua família tinha uma fazenda de café. Ele demorou dois anos até abrir a primeira loja Suplicy Cafés Especiais. Hoje, são quatro casas, e o faturamento da rede cresce 40% ao ano. Em comum, essas cafeterias têm como principal objetivo seguir o conceito desenvolvido pela Starbucks: o café deve ser servido num ambiente de qualidade, contemporâneo e aconchegante. A pioneira dessa tendência no Brasil foi a Cafeera, cuja primeira loja surgiu em 1999. A rede pertence ao grupo Ipanema Coffees, um dos principais produtores do país e o único brasileiro que fornece grãos à Starbucks.

Duas novas redes devem chegar ao país nos próximos meses. A Nespresso, braço de cafés especiais da suíça Nestlé, prevê inaugurar em dezembro seu primeiro ponto em São Paulo. A rede funciona há vinte anos em mais de quarenta países. Em setembro de 2007, chega ao Brasil a rede italiana Espressamente, da illycaffè – uma das principais marcas internacionais. "A competição é muito saudável porque deixa o café cada vez melhor. O produtor de cafés especiais é um enamorado. Ama o produto e transmite isso ao cliente", afirma Ernesto Illy, presidente honorário da torrefadora. O grupo illycaffè compra do Brasil 55% de todo o café comercializado nas suas lojas. Um dos fornecedores da illycaffè é a Fazenda Da Terra, do grupo D'Paschoal, um dos maiores produtores de café especial do Brasil. "Há um movimento mundial pela valorização do consumo de bons cafés que se repete no Brasil", diz Luís Norberto Pascoal, diretor da fazenda, que vende 99% de sua produção ao exterior. Os cafés especiais ganharam também as prateleiras dos supermercados, e suas vendas crescem 30% ao ano. Eles se diferenciam dos tradicionais por possuir um aroma suave, ser encorpados e ter um sabor intenso que permanece na boca por vários minutos após o término da bebida. A qualidade custa mais. O preço do quilo desse café pode ser até quatro vezes mais alto que o dos tradicionais. "Mas, quando o consumidor experimenta um bom café fora de casa, quer repetir a experiência e vai ao supermercado buscar pós de boa qualidade", afirma Nathan Herszkowicz, diretor executivo da Abic.

A nova cultura do café gerou uma demanda pelos chamados baristas – profissionais especializados e capazes de criar bebidas com base em cafés de alta qualidade, além de servi-las com grande requinte visual. Foi a paixão pelo café que fez a psicóloga Isabela Raposeiras abandonar o consultório e se dedicar ao estudo da bebida. Isabela foi a campeã do primeiro Campeonato Brasileiro de Baristas, em 2002, depois de passar meses pesquisando sobre o tema e de realizar cursos no Brasil e no exterior. Afirma ela: "O café é uma bebida que merece ser tão bem apreciada como o vinho".

Também é bom para a saúde

É o que mostram as últimas pesquisas sobre
o café. Mas o limite é quatro xícaras por dia


Anna Paula Buchalla


Montagem sobre fotos de Pedro Rubens, G. Barden, M. Deutsch, Morgan D. Lossy



Descoberta em 1820 pelo químico alemão Ferdinand Runge (em resposta a um desafio feito a ele pelo poeta Wolfgang von Goethe), a cafeína é apenas uma entre as cerca de 1 000 substâncias que compõem o café. Como se trata de um estimulante poderoso, ela monopolizou a atenção dos estudiosos da bebida durante mais de um século e meio. Esse quadro mudou. Hoje, centenas de médicos e cientistas dedicam-se ao trabalho de analisar um a um todos os elementos contidos no café. Os achados têm se revelado fascinantes. Já se concluiu que a bebida tem substâncias antioxidantes bastante potentes, como os sais minerais, a niacina (uma vitamina do complexo B) e os ácidos clorogênicos. Tais compostos, que ajudam a combater o envelhecimento das células, explicam os efeitos protetores do café contra os mais diversos males – do diabetes tipo 2 à cirrose. A quantidade de antioxidantes existente num cafezinho supera a encontrada em outros alimentos considerados grandes fontes dessas substâncias, como maçã, banana, vinho tinto, abacate e chá verde. Isso mesmo: o café tem quase o dobro de antioxidantes do que o festejado chá verde.

Como o café é consumido em larga escala, ele se tornou para muita gente a principal fonte de antioxidantes. Essas substâncias têm sido entronizadas na medicina preventiva como os compostos naturais mais eficientes para diminuir o ritmo de progressão de doenças e evitar outras. Um estudo coordenado pelo químico Joe Vinson, da Universidade de Scranton, na Pensilvânia, mostra que mesmo nos ricos Estados Unidos o café é a principal fonte de antioxidantes na dieta de um americano adulto. Ele contribui, em média, com 1.299 miligramas de antioxidantes por dia, quantidade mais do que suficiente para retardar o aparecimento de algumas doenças associadas ao envelhecimento. Disse Vinson a VEJA: "O café tem mesmo um papel preponderante na manutenção da saúde. Seus efeitos antioxidantes são comparáveis aos das vitaminas C e E e do betacaroteno".

Em outro estudo, conduzido por pesquisadores da Universidade Harvard, o consumo regular de café mostrou ser capaz de prevenir a maioria dos casos de uma séria doença metabólica, o diabetes tipo 2. Os pesquisadores de Harvard cruzaram dados de nove trabalhos científicos, envolvendo 200.000 pessoas. A conclusão foi chancelada recentemente por cientistas da Universidade da Califórnia. Em um artigo publicado na revista especializada Diabetes Care, os cientistas atribuíram a redução em 60% da incidência de diabetes tipo 2 ao consumo diário de café – uma marca tão extraordinária que nenhum medicamento pode reivindicar. Outras pesquisas e testes serão necessários antes de os médicos começarem a receitar café a pacientes propensos a desenvolver a doença metabólica. Ainda não se sabe sequer de que forma a bebida é capaz de prevenir o diabetes. O cardiologista Luiz Antonio Machado César, coordenador do grupo de estudos sobre o café e o coração, do Incor de São Paulo, adianta uma hipótese: "A cafeína talvez seja capaz de tornar as células mais sensíveis à ação da insulina". É provável também que o benfeitor da saúde dos potenciais diabéticos deva ser procurado em outros componentes do café. Nesse caso, os ácidos clorogênicos da bebida, cuja ação antioxidante é bastante conhecida, ajudariam a reduzir as taxas de açúcar no sangue. As respostas a essa e a outras questões relativas ao café brotarão dos laboratórios nos próximos anos.

As dúvidas geradas pelas pesquisas são muitas. Às vezes elas carregam até uma pitada de orgulho nacional. Os americanos em sua maioria tomam café ralo. Pois não é que os cientistas americanos que viram propriedades anticirróticas no consumo da bebida dizem que o fígado agradece uma xícara de café – mas ele tem de ser bem ralinho. A nutricionista italiana Chiara Trombetti diz o contrário. Para fazer bem, o café tem de ser bastante forte – como os italianos gostam. Ela diz que o café forte ajuda até a emagrecer, já que a cafeína tem o poder de acelerar o metabolismo, processo que estimula a queima de gordura. Do ponto de vista da química do sangue, o café ainda não é uma unanimidade positiva. O processo de torrefação consegue eliminar quase todas as gorduras e os açúcares contidos no grão. O coador de papel cuida de filtrar ainda mais os lipídios e os resíduos sólidos potencialmente danosos para a saúde. Mas isso nem sempre é feito à perfeição. Teoricamente, os cafés fortes têm mais probabilidade de conter gorduras em quantidades indesejáveis. Esse senão é quase desprezível diante de tantas evidências positivas.

Algumas pesquisas já associaram o consumo regular da bebida a uma incidência menor de depressão, suicídio e alcoolismo. São tantos os benefícios oferecidos pelo café que um artigo publicado no British Journal of Nutrition perguntava, no ano passado, se ele deveria ser considerado oficialmente um alimento funcional, com o poder de prevenir e até tratar as mais diversas doenças. Evidentemente, não é o caso de beber café como se bebe água. Inclusive porque a cafeína é um estimulante que causa dependência moderada. É consenso entre os especialistas que o consumo da bebida não deve ultrapassar quatro xícaras diárias – o equivalente a 600 mililitros. No caso das crianças, o café misturado ao leite é a forma mais aconselhável.

Um conselho aos que tomam café para se manter alertas: os estudos mais recentes sugerem que os melhores resultados são obtidos se as doses forem divididas ao longo do dia. Por exemplo, alguém que toma meio litro da bebida na parte da manhã deveria dividir essa quantidade em duas ou três vezes no decorrer do dia. A qualidade da água é vital no processo. Para se ter uma idéia, o café expresso, o menos diluído, é composto de 98% de água. Como vovó dizia, não se deve ferver a água durante o preparo. O ponto ideal de aquecimento é o da pré-fervura, condição em que a bebida preserva seus nutrientes, entre os quais os antioxidantes.




Fotos Photodisc




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