Uma pesquisa inédita revela que
as crianças brasileiras vivem sitiadas
por medos e preocupações
Isabela Boscov
Jonathan Kirn/Getty Images |
O medo é uma emoção onipresente na vida das crianças brasileiras. E não são apenas as ameaças que fazem parte do cotidiano nacional, como os assaltos e os seqüestros, que as crianças temem. Elas têm, por exemplo, mais medo do terrorismo do que as americanas, que estão concretamente sujeitas a atentados. Preocupam-se mais com a aids do que os meninos e as meninas da África do Sul, onde a contaminação segue em ritmo alarmante. Angustiam-se mais com a intimidação dos colegas de escola do que as inglesas, que têm antiga tradição no fenômeno do bully – o valentão que atormenta as outras crianças. Também têm mais medo de falhar no ingresso em uma universidade do que as japonesas, para as quais o sucesso nos estudos é uma notória fonte de pressões familiares. Chegam até a se apavorar mais com a gripe do frango do que as crianças chinesas, que conviveram com a epidemia. Esses dados constam de uma pesquisa inédita patrocinada pelo canal Nickelodeon, que ouviu 2 800 crianças entre 8 e 15 anos das classes A e C, em catorze países. "Esperávamos números elevados entre as crianças brasileiras nas questões relativas ao medo. Ainda assim, a proporção em que eles surgiram chega a ser chocante", diz Noel Gladstone, vice-presidente internacional de pesquisa do canal infantil e um dos responsáveis pelo levantamento, cuja finalidade era mensurar o equilíbrio emocional das crianças de diversos territórios em que o canal atua. O estudo mostra que as crianças do Brasil são as mais estressadas do mundo e que o país vem falhando na tarefa essencial de protegê-las e lhes dar tranqüilidade.
Os meninos e meninas brasileiros não estão sós em sua aflição. Eles compõem uma espécie de bloco com os do México, da África do Sul e, na liderança, da Indonésia. E aí está um dos dados mais intrigantes da pesquisa. Entre todas as nacionalidades pesquisadas, os indonésios são os únicos que sistematicamente batem os brasileiros no quesito medo. Não é difícil entender por quê, já que eles convivem com perseguição religiosa, terrorismo, desastres naturais como o tsunami de 2004, pobreza e um regime repressivo. No Brasil, só um desses itens – a pobreza – é prevalente. As crianças indonésias, porém, ficaram no extremo oposto, o mais baixo, num item fundamental do estudo: a "nota" atribuída ao stress experimentado pelas crianças de cada um dos países. Tiraram 4,3. Os brasileiros atingiram o pico de 7 pontos. Como explicar que os indonésios, que têm mais medo, sejam tão menos estressados do que os brasileiros? Tanto Noel Gladstone quanto a psicóloga Lidia Aratangy, que interpretou os dados para o mercado nacional, apontam uma razão fundamental para esse panorama desolador: a violência e a instabilidade existem em alguma medida em todo o mundo, mas normalmente se manifestam de forma localizada. Já a vida brasileira, hoje, não oferece às crianças nenhum espaço – físico e psicológico – em que elas se sintam a salvo dos problemas do universo adulto. O medo é uma resposta natural às ameaças; já o stress advém da insegurança e da sensação de tumulto, para as quais não há santuário.
Antonio Milena |
Entrada de uma escola brasileira, com grades e seguranças: lá dentro, a preocupação é a nota; do lado de fora, um medo que abrange de seqüestros à gripe do frango |
Qualquer pai e qualquer mãe sabem que crianças são esponjas que absorvem tudo o que se passa à sua volta. Por isso mesmo, é preciso envolvê-las numa membrana, por assim dizer. Aquilo que é "grande", complicado ou angustiante demais para o estágio em que elas se encontram tem de ficar do lado de fora ou então ser quebrado em unidades menores, que os pequenos sejam capazes de processar. Se acontecer uma morte na família, por exemplo, a criança terá de lidar com o fato. Mas ninguém aproveitará a oportunidade para esclarecer que todas as pessoas que ela conhece também virão a morrer um dia. Parece óbvio, mas o que a pesquisa do Nickelodeon revela é que os meninos e meninas brasileiros não parecem dispor hoje de nenhum filtro ou anteparo que os mantenha a uma distância razoável dos aspectos mais duros da realidade. Eles são os que mais se afligem com a questão da segurança, e também os que mais se preocupam – com larga e triste vantagem – com questões adultas como emprego, dinheiro e a destruição do meio ambiente. Ganham de lavada ainda num item curioso. Só 20% das crianças inglesas e 50% das chinesas, por exemplo, acham que fazer os pais felizes está entre suas incumbências. Mas essa é uma expectativa partilhada por 95% das brasileiras, em mais um desdobramento do medo e da impotência que elas lêem nos gestos dos adultos. Não é de admirar, portanto, que apenas 16% delas optem por conversar com os pais quando estão aflitas, uma média muito inferior à dos outros pesquisados – em seu entender, levar problemas a eles pode resultar em desagrado.
Timothy Clary/AFP |
Meninas amish no enterro de cinco colegas mortas por um atirador, em outubro, e indonésios à espera de auxílio após o tsunami de 2004: ameaças existem em toda parte, mas em nenhum lugar elas geram tanto stress quanto entre as crianças brasileiras |
Wally Santana/AP |
Segundo Lidia Aratangy, dois outros fatores contribuem para alimentar esse pavor em que vivem as crianças brasileiras. O primeiro seria o clima de catastrofismo que se formou em torno do caos nacional. Ele faz com que os aspectos ruins de um acontecimento sejam ressaltados, enquanto seus eventuais aspectos positivos ficam (quando ficam) em segundo plano – algo fácil de verificar em instâncias tão diversas quanto telejornais e conversas de vizinhos, em que a maldade do bandido costumeiramente desperta muito mais interesse do que a coragem do cidadão que o enfrentou. O outro fenômeno é um bocado mais difícil de contornar: o espraiamento da adolescência. "Antes, essa era uma fase cronológica e biológica que ia dos 13 ou 14 anos aos 17. Hoje, ela está não só transbordando para a idade adulta como também acuando a infância", opina Lidia. Ou seja, a confusão emocional típica dos adolescentes cada vez mais atinge aqueles que, pelo calendário, ainda deveriam estar longe de experimentá-la – o que só faz agravar as inseguranças já demasiado esmagadoras da criançada. O cenário que a pesquisa do canal Nickelodeon revela é, em suma, consternador: o de um país que vem privando suas crianças de alguns dos seus direitos mais básicos – à inocência, à tranqüilidade e àquele pouquinho de ilusão que dá cor à infância.
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