Valor (13/10/05)
O presidente da República, tal como um rei medieval, ditou a justiça e sentenciou: "Vocês (deputados do PT) não são corruptos. Cometeram erros, mas não de corrupção (sic) e erraram de não contar a verdade de uma vez, o que prolongou a crise".
Quantas imprecisões! Primeiramente, os deputados ainda não contaram a verdade, nem parte dela. Depois, o erro não se limita ao recebimento de caixa 2. Mais: o presidente, ao se ungir em magistrado, assume a tarefa exclusiva da Câmara dos Deputados e faz de conta que a crise é fruto dos erros desculpáveis dos deputados, e não do seu governo ou dele mesmo.
O primeiro-ministro José Dirceu foi exonerado, a cúpula do PT destituída em face da revelação da prática política de compra, com dinheiro vivo, de apoio político dos demais partidos, cujos líderes estão sendo processados. Surpreendentemente, no entanto, pretende-se que o problema seja apenas do Congresso. O presidente, então, mistifica e indica que a crise mora na Casa ao lado, quando a fonte está no próprio Planalto e na forma de ocupação do poder.
Se for para dizer a verdade, toda a verdade, nada mais do que a verdade, então por qual razão o Gabinete Institucional não apresenta a lista de visitantes do Palácio do Alvorada, para espantar de vez dúvida acerca de eventuais idas de Marcos Valério à residência presidencial? Por que não se ouve Paulo Okamoto acerca do pagamento do empréstimo do PT, com a apresentação dos cheques?
Em respeito à verdade, há de se esperar o fim dos trabalhos das CPIs, agora em fase mais árdua, sem holofotes, no cruzamento de dados, bancários e telefônicos, ao lado da análise de contratos de publicidade e de investimentos dos fundos de pensão nas corretoras, em especial na compra de debêntures.
O exame das irregularidades em estatais é outro ponto, a começar pela Petrobras Bahia, que teve cerca de 80 contratos suspensos por vícios graves pelo Tribunal de Contas da União. O rastreamento das contas no exterior é mais uma tarefa ainda em meio de caminho.
Há muito a investigar, mas membros da CPI dos Correios já indicam que a fonte dos recursos é pública, e, portanto, a crise não está no Congresso, mas mora no outro lado da praça.
O fio da meada está sendo desvendado. A origem do dinheiro começa a aparecer, mas o presidente da República precipita-se em dar as investigações como findas. Vê Sua Excelência tudo já resolvido, em face da eleição de Aldo Rebelo e da eventual renúncia dos deputados do PT, premiados com a garantia de legenda em 2006. É com sofreguidão que se pretende que a origem dos recursos reste perenemente na sombra.
É importante que a sociedade seja uma parceira constante da justiça eleitoral na fiscalização das eleições
Por essa razão, os motivos determinantes do movimento da sociedade civil, "Da Indignação à Ação", fazem-se cada vez mais justificáveis, pois do manifesto, que já tem mais de 200 mil assinaturas, consta a declaração enfática de que "punições firmes e proporcionais às faltas praticadas são o único desfecho que os cidadãos brasileiros aceitam para as investigações em curso".
Em nome da política honrada, expressão de Goffredo da Silva Telles Júnior em recente artigo, deve-se resistir com firmeza à precipitação presidencial, que busca minimizar os fatos, fazendo tábula rasa da honra na política. Desse modo, certamente, a fala presidencial apenas aprofunda a indignação dos signatários do manifesto "Da Indignação à Ação", cabendo agora conclamar a participação de outros setores da sociedade e irmanar-se com o Movimento Pró-Congresso, que busca preservar a dignidade do Legislativo.
Em outra perspectiva, absolutamente entrosada com a exigência de apuração firme, está o reclamo por uma reforma política, mesmo nas difíceis circunstâncias desse instante. Há propostas de mudanças estruturais de maior quilate, devendo-se aproveitar a oportunidade para iniciar amplo debate sobre reforma política, já que boa parte dos setores organizados está preocupada com a questão.
Emenda constitucional prorroga, excepcionalmente, para 15 de dezembro, o prazo já vencido de alteração da legislação eleitoral, estabelecido no artigo 16 da Constituição. Se aprovada, deve-se tentar obter: o término do voto proporcional unipessoal, adotando-se o voto em lista fechada, pois o distrital misto não será factível em 2006; a utilização do tempo de televisão preferencialmente com debates; a redução do número de candidatos por partido; a proibição dos showmícios.
Todavia, outros procedimentos, não limitados pelo prazo do artigo 16 da Constituição, podem ser adotados já para 2006. É da maior importância que se faça da sociedade, abalada pela crise, uma parceira constante da fiscalização da correção das eleições. Duas medidas somadas constituirão um avanço imenso. Primeiramente, exigir a dotação de meios, verbas, equipamentos e pessoal para a Justiça Eleitoral, a fim de poder cumprir sua tarefa fiscalizadora. Depois, dar um papel ativo ao eleitor no controle do cumprimento da correção no processo eleitoral.
Além do mais, o TSE deve firmar convênios com os Tribunais de Contas dos Estados e com o da União para que técnicos em contabilidade auxiliem no controle das contas de campanha. O mesmo com os Conselhos Regionais de Contabilidade.
No campo da participação da sociedade, deve-se começar pela divulgação pela Justiça Eleitoral das principais figuras ilícitas, visando a inteirar a sociedade do que é proibido. Criar, então, um disque-denúncia nos Tribunais Regionais Eleitorais e contar com o auxílio de entidades como OAB - a de São Paulo já se dispõe a tal - para assistência jurídica na formulação de representações acerca de infrações eleitorais. Por fim, a análise das contas de campanha para cargos majoritários há de ser em audiência pública.
Como se vê, em face dos mais de 200 mil signatários do manifesto "Da Indignação à Ação", espera-se que muito se realize para impedir a fissura sem conserto das instituições democráticas e dar início à reconstrução da República.