Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 01, 2005

MERVAL PEREIRA Sotaques diferentes

o globo

Alguém está enganando alguém nessa história da criação do Partido Municipalista Renovador (PMR). Onde se vê uma manobra do presidente Lula para se aproximar dos evangélicos através do vice José Alencar, o "aventureiro do bem" Mangabeira Unger vê uma "conspiração" de dentro do sistema para derrubá-lo através do próprio vice, que seria o candidato à Presidência do novo partido, contra Lula e sua política econômica.

Por essa visão, que pode ser apenas mais uma alucinação desse Dom Quixote da política brasileira, estaria em curso uma "virada de mesa" comandada pelo que chama de "uma federação de outsiders (estranhos) do sistema": "Ficará claro nos próximos dias que essa é uma iniciativa nos moldes da Aliança Liberal de 1929, para virar o jogo", sonha Mangabeira.

(A Aliança Liberal foi uma coligação oposicionista liderada por políticos de Minas e Rio Grande do Sul contra a decisão do presidente da República Washington Luiz de fazer como sucessor Julio Prestes, outro paulista, rompendo o revezamento conhecido como "política do café-com-leite". A vitória de Julio Prestes na eleição acabou gerando crises que desaguaram na Revolução de 30, que levou Getúlio Vargas ao poder).

Na análise de Mangabeira, a Aliança Liberal foi feita "por homens que até o momento de sua construção eram parte do sistema oligárquico com que se governava o país, e fizeram uma conspiração cívica para derrubar aquele sistema. A atuação de Antonio Carlos (Minas) e de Getúlio Vargas (Rio Grande do Sul) começou como uma dissidência do sistema, mas virou muito mais, virou uma conspiração para buscar apoios de fora do sistema para derrubá-lo".

Mangabeira diz que o que o liga a José Alencar e ao movimento evangélico, "coisas que parecem disparatadas", reconhece, é que todos, na sua visão, estão fora do poder. "Até o vice, embora seja a segunda figura da República, por opção própria é um outsider ", comenta. Mangabeira garante que não faz sentido classificar esse projeto como da Igreja Universal. Se for, "escolheram então as pessoas erradas, pois temos convicções arraigadas, somos inconformados com o projeto dominante no país e, sobretudo, determinados a virar a mesa", diz ele, referindo-se também ao ex-ministro Raphael de Almeida Magalhães, que será o presidente da nova sigla.

Para Mangabeira, "quem participa da política em um país como o nosso tem que cuidar das aparências, mas tem que cuidar, sobretudo, das realidades que são mais importantes. Temos que buscar as forças reais, as bases reais da sociedade brasileira, politizá-las, convertê-las". Nessa visão, em vez de serem usados pelos evangélicos, os políticos do PMR não ligados à Igreja usariam essa base social de apoio para sua ação política. Por isso Mangabeira garante que o partido "não será um braço político da Igreja Universal, ninguém aqui é massa de manobra de uma Igreja".

Ele diz que há muito tempo está interessado intelectualmente no movimento evangélico e na sua relação com uma nova classe média emergente, e vinha conversando muito com o senador Crivella, razão pela qual surgiu o convite para participar do partido que, segundo ele, será laico e contará também, se depender dele, com o apoio de católicos. "Vou lutar para que o pequeno Partido Humanista Solidário (PHS), que me apoiou com aquele pequeno tempo de televisão, ligado a movimentos da doutrina social dos católicos, se funda com esse novo partido", sonha Mangabeira, ignorando as divergências entre as duas Igrejas.

"Legitimamente, um partido político tem que buscar as bases nas forças reais da sociedade em que atua", diz o professor de Harvard, para quem um fato social decisivo para qualquer orientação transformadora do Brasil hoje é o surgimento de uma nova classe média, e de uma nova cultura de emergentes, "que é esse pessoal que estuda à noite, luta para abrir um pequeno negócio, para ser profissional independente, que está construindo no país uma nova cultura de auto-ajuda e de iniciativa, e que já está no comando do imaginário nacional".

Entre as expressões dessa nova classe média, ele destaca o movimento evangélico, que precisa ser visto "como um elemento entre muitos dessa nova base social. São dezenas de milhões de brasileiros organizados". A candidatura presidencial será o objetivo prioritário, e quem tem melhores condições políticas hoje seria o vice-presidente José Alencar.

"Esse partido tem que ser de claro confronto com a orientação predominante no país abraçada pelo atual governo", enfatiza Mangabeira, para quem o vice-presidente tem que passar por um processo de transição "que lhe permita desvincular-se de seus compromissos, devolver a pasta ministerial e passar a correr o país pregando essa mensagem, ajudando a construir essa alternativa".

Foi aliás para continuar fiel a esse princípio que Mangabeira Unger desistiu de se reintegrar ao PDT, onde pensava se candidatar a presidente da República. Segundo ele, foi "com tristeza" que ele verificou que há uma "desorganização conceitual" no partido fundado por Brizola. "Se não, não se levaria a sério a idéia de ter como candidato à Presidência da República um defensor intransigente da política neo-liberal", diz, referindo-se ao senador Cristovam Buarque, que saiu do PT para se filiar ao PDT.

Mangabeira recusa a possibilidade de o vice José Alencar continuar como companheiro de chapa de Lula, levando o apoio do PMR na reeleição. Para ele, a partir do momento em que assinou a ficha do novo partido, o vice-presidente está participando de uma conspiração. Pode ser que Mangabeira esteja diante de mais uma "confusão conceitual" como a que enfrentou no PDT. Ou talvez esteja havendo uma dificuldade de comunicação entre o professor Mangabeira Unger e o vice José Alencar, que falam com sotaques diferentes.

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