Não esqueçam do amigão do homem...
Atenção, deputados do Conselho
de Ética: o caso Bob Marques é o
dólar na cueca de José Dirceu
Marcelo Carneiro
Montagem sobre foto de Dida Sampaio/AE e Ernesto Rodrigues/AE
CUCA | |
Dirceu, o deputado-Cuca, e Bob, o amigão, assessor informal e companheiro de "sábados, domingos e feriados": a cada depoimento, uma nova versão sobre a autorização para o pagamento de 50 000 reais |
O retorno do deputado José Dirceu ao Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, na semana passada, pode não ter contribuído para esclarecer as dúvidas dos brasileiros a respeito dos meandros do valerioduto ou da participação do ex-chefe da Casa Civil no esquema, mas representou uma valiosa contribuição do ex-ministro ao já farto anedotário do mensalão. Logo no início do depoimento aos deputados que deverão decidir se encaminham ou não ao plenário o seu processo de cassação, Dirceu declarou: "Volto ao Conselho de Ética com a mesma serenidade, com a consciência tranqüila, cada vez mais convencido da minha inocência". O que o deputado quis dizer com isso permanece um enigma. É possível que alguém possa ficar cada vez mais magro, cada vez mais sedutor ou mesmo cada vez mais modesto. Mas a inocência, assim como a morte, não permite relativizações. A menos que, no mundo de Dirceu, existam pessoas "meio vivas", "meio honestas" ou "meio inocentes".
Das tentativas de malabarismo retórico do ex-ministro sobraram acusações à imprensa ("Fui submetido a um linchamento público" ou "De nada valem os quarenta anos que tenho de vida pública") e muitas meias verdades (ou seriam meias mentiras?). Ao ser questionado pelo relator do processo de cassação, deputado Júlio Delgado (PSB-MG), sobre a sua relação com Roberto Marques, que lhe presta serviços de secretário, Dirceu mostrou-se cada vez mais enrolado (e não "cada vez mais inocente"). Conforme aponta documento em poder da CPI, Roberto Marques, ou Bob Marques, foi autorizado em junho de 2004 a sacar 50.000 reais das contas do empresário Marcos Valério. Em seu primeiro depoimento ao Conselho de Ética, no início de agosto, o deputado havia dito que Bob era seu "amigo e assessor informal". No depoimento de terça-feira, o ex-chefe da Casa Civil preferiu um recuo estratégico: "Ele não é meu assessor, é funcionário da Assembléia Legislativa de São Paulo. E, aos sábados e domingos, nas férias, sempre me acompanha, como amigo. Ele é um amigo". Também no primeiro depoimento, Dirceu tinha dito que nada havia que provasse que o Bob Marques do documento fosse o Bob Marques que o acompanha aos sábados, domingos e nas férias. "Eu não posso aceitar que esse Roberto Marques seja o Roberto Marques que é meu amigo", disse (como se tratasse de "aceitar"). No depoimento de terça, Dirceu, de novo, mudou o script. Quando Delgado lembrou que Marcos Valério afirmara que o nome de Roberto Marques lhe fora passado pelo ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares – sugerindo que seria coincidência demais que houvesse dois Robertos Marques no círculo petista –, o ex-ministro foi às cordas. Constrangido, ensaiou uma saída jurídica: "Ele (Marcos Valério) diz que colocou e retirou esse nome. Mesmo tomando como verdade isso, não houve crime nenhum, ilícito nenhum". Ou seja: Bob, que antes era um assessor informal, agora virou simplesmente "amigo". E a possibilidade de o Bob do documento ser o Bob das férias, antes negada com veemência, agora é algo que pode ser "tomado como verdade".
Joedson Alves/AE |
Toninho: Bonus-Banval é lavanderia petista |
Há uma razão muito clara para a preocupação do ex-chefe da Casa Civil com a presença do nome de seu amigão Bob no valerioduto: Bob pode ser o dólar na cueca de Dirceu. O fato de o secretário (ou assessor informal, ou companheiro de férias, como ele prefere) do deputado ter sido autorizado a sacar das contas de Valério torna a situação do ex-ministro idêntica à de parlamentares petistas como Professor Luizinho (SP) e Paulo Rocha (BA) – que, também por meio de saques feitos por assessores, foram flagrados se beneficiando do valerioduto. Outro problema para Dirceu é a suspeita triangulação entre Roberto Marques, Delúbio Soares e a corretora Bonus-Banval. Numa operação até agora não esclarecida, a autorização para que o companheiro de férias de Dirceu sacasse um cheque de 50.000 reais foi repassada a outra pessoa, Luiz Carlos Mazano – que vem a ser motorista da Bonus-Banval.
A corretora é apontada como um dos principais escoadouros de recursos do mensalão. Ela vem sendo investigada pela Polícia Federal por causa da suspeita de que, nos últimos anos – e em especial durante as eleições de 2002, que levaram Lula à Presidência –, tenha funcionado como a principal lavanderia petista, transformando em reais os dólares que rechearam malas e cuecas de altos dirigentes da legenda. Em depoimento a uma sessão conjunta das CPIs, o doleiro Antonio Oliveira Claramunt, o Toninho da Barcelona, disse ter participado de uma operação de 7 milhões de reais que teria como destino campanhas do PT. A Bonus-Banval, segundo Barcelona, foi a intermediária do esquema. O doleiro revelou ainda que Enivaldo Quadrado, um dos proprietários da corretora, se tornou amigo de José Dirceu. Quadrado nega que conheça o ex-ministro. Em depoimento à Polícia Federal, no início do mês passado, Marcos Valério disse que a idéia de usar a Bonus-Banval para repassar recursos a partidos da base aliada e ao próprio PT foi de Delúbio Soares. A Bonus-Banval, como se vê, está cada vez mais enrolada no esquema clandestino do mensalão. E José Dirceu, aquele que diz ficar cada dia mais inocente, idem.
...nem das relações
dele com Valério
Julia Duailibi
Celso Junior/AE |
Dirceu, que se diz "cada vez mais convencido" da própria inocência |
Os indícios de que o ex-ministro José Dirceu esteve sempre envolvido com o bônus da dinheirama do PT são suficientes para que ele seja cassado. A tentativa patética do ministro de não arcar com os ônus dessa convivência não pareceu suficiente para salvá-lo da degola quase certa. Além de examinarem com cuidado as relações de Dirceu com seu amigo, consultor e secretário "nos fins de semana, feriados e nas férias", as CPIs também não podem se esquecer do fato gerador da crise, o valerioduto, de cuja concepção e execução Dirceu é parte importante.
O homem da mala, o publicitário mineiro Marcos Valério, a locomotiva do mensalão, é o homem que comprovadamente conseguiu um emprego para a ex-mulher de José Dirceu, a psicóloga Ângela Saragoça, que ainda hoje trabalha no banco BMG, em São Paulo. Valério também é o homem que convenceu a direção do Banco Rural a ignorar sua tradição de não atuar na área de crédito imobiliário apenas para beneficiar a ex-mulher de Dirceu, que levou um financiamento de casa própria de 42 000 reais. Na semana passada, um sócio de Marcos Valério, o advogado Roberto Tolentino, confessou à CPI dos Correios que comprou por 115.000 reais um apartamento da ex-mulher de Dirceu pelo bom e único motivo de que o imóvel era da ex-mulher de Dirceu – confissão que desmente declaração anterior do petista Ivan Guimarães, ex-presidente do Banco Popular, segundo a qual ele não sabia que o imóvel era de Ângela Saragoça e que Tolentino comprou o apartamento a seu pedido. Ou seja: enquanto a ex-mulher de Dirceu era cercada de mimos por Valério – emprego, empréstimo, negócio –, Dirceu alega que não há uma única prova de que tinha algum envolvimento com Valério.
Em favor do ex-ministro, admita-se que Valério quis agradar a Ângela Saragoça para conquistar a simpatia de Dirceu, mas sem seu consentimento. O dado insustentável é que Valério não vivia na periferia de Dirceu, em busca de uma brecha para chegar ao então ministro. Valério tinha – de novo, comprovadamente – ascendência até para abrir a porta do gabinete de Dirceu a empresários. No dia 11 de janeiro passado, por exemplo, o publicitário levou à presença do então ministro o português Ricardo Espírito Santo, presidente do Banco Espírito Santo, controlador da Portugal Telecom, à qual Valério é acusado de ter recorrido, duas semanas depois da audiência entre Dirceu e o banqueiro, em busca de um reforço para o caixa do PT. Outro exemplo: Valério abriu as portas da Casa Civil à cúpula do Banco Rural – o mesmo que dava empréstimos camaradas ao publicitário porque sabia que, no fundo, emprestava ao PT. Kátia Rabello, dona do Rural, em depoimento ao Conselho de Ética, já disse textualmente que Valério foi o "facilitador" de seus dois encontros com o então ministro Dirceu.
As relações são tão amplas que se entrecruzam. O mesmo Valério que convenceu o BMG a empregar a ex-mulher de Dirceu atuou também como elo entre o banco e o então ministro. O BMG – lembre-se – é o banco que emprestou quase 45 milhões de reais ao valerioduto, canal de escoamento do mensalão do PT. Aliás, o primeiro empréstimo do BMG à cúpula petista saiu no dia 17 de fevereiro de 2003 – e a audiência em que Valério reuniu a direção do BMG e o então ministro Dirceu aconteceu três dias depois. Um encontro de agradecimento? Dirceu nega. Diz que recebeu o BMG para tratar de uma fábrica de alimentos que o banco inaugurava no interior de Goiás. Fechando-se o círculo, Valério já disse ter sido informado que Dirceu sabia da existência dos empréstimos (no BMG e no Rural) que abasteciam o valerioduto. Valério diz isso, sua mulher, Renilda, também diz isso. Emerson Palmieri, ex-tesoureiro do PTB, é outro que garante que Dirceu conhecia toda a vida financeira do PT. Ele informa que os acordos financeiros que seu partido fechava com o PT eram sempre comunicados a Dirceu. O ex-ministro costuma dizer que tem um único algoz, o deputado cassado Roberto Jefferson, mas, ao dizê-lo, oculta o fato de que há uma fieira de depoimentos que lhe são comprometedores: Valério, Renilda, Palmieri, Kátia Rabello, Ricardo Guimarães (presidente do BMG)...
A parceria entre Valério e Dirceu ainda é um dado sob análise e pode ter-se ampliado para o terreno dos grandes negócios, embora sobre isso haja apenas uma suspeita. Nos encontros de Dirceu com o Rural, "facilitados" por Valério, o assunto predominante era a liquidação do Banco Mercantil de Pernambuco, instituição que está sob intervenção do Banco Central desde 1995 e da qual o Rural detém 22% das ações. É um negócio que, dependendo do formato adotado, pode render muitos milhões ao Rural. Curiosamente, quem tratava do assunto com o Banco Central era o próprio Valério. Ele esteve quatro vezes no BC para falar do caso. Foram três audiências em 2003 e uma em 2004. Na semana passada, o deputado Gustavo Fruet (PSDB-PR), da CPI dos Correios, pediu informações ao Banco Central sobre as visitas de Valério. Fruet está intrigado para saber como um publicitário – na verdade, um dublê de empresário da publicidade e lobista – tem franco acesso ao BC para tratar da liquidação de um banco.
Talvez seja por causa disso tudo – dos mimos à ex-mulher, dos encontros com empresários, dos empréstimos bancários, dos depoimentos de envolvidos –, talvez seja por causa disso tudo, por causa de suas vastas conexões com o mais notório operador do mensalão, que José Dirceu tem necessidade, ele mesmo, de fazer um esforço continuado para convencer-se "cada vez mais" de sua inocência. Talvez.