Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, outubro 03, 2005

Denis Lerrer Rosenfield As liberdades

O ESTADO DE S PAULO
A liberdade começa a pericli
tar quando o Estado avança sobre o campo das escolhas individuais. Se o Estado se arvora em conhecedor do bem e tenta impor essa concepção aos cidadãos, estes se vêem destituídos da maioridade, como se necessitassem de um irmão maior ou de um pai que lhes indicasse o que deveria ser feito. Nestas circunstâncias, o homem se torna um menor, que necessita de um tutor para monitorá-lo. Se os homens são assim considerados, reduzidos em sua capacidade de decisão, as liberdades encolhem e o Estado se coloca como aquela instância que sabe o que é melhor para todos os seus membros.
Deve-se ter um extremo cuidado com aquelas leis, normas e regras que traduzem uma noção de bem imposta a todos, como se cada um de nós não fosse capaz de discriminar o que é o bem individualmente consi
derado. Cada pessoa sabe de uma ou outra maneira o que é melhor para ela, não necessitando de uma norma que lhe imponha uma certa noção do que ela deve fazer, salvo se essa imposição for decorrente dos atentados à propriedade alheia, à integridade do corpo físico e à vida em geral. Em suma, se houver uma ameaça à liberdade de escolha do outro.
Temos observado nos últimos anos em nosso país uma série de medidas que têm, progressivamente, circunscrito o campo da liberdade de escolha, como se os indivíduos devessem aceitar tudo o que provém do Estado como se fosse o seu bem individual. O Estado, neste sentido, não teria apenas a função de regrar as relações interindividuais, mas deveria dizer e impor a cada um o que considera como sendo o bem.
Um processo desse tipo é, às vezes, tão sub-reptício que nem nos damos conta do que está acontecendo e vimos a considerar uma tal imposição como 'normal'. Vejamos três exemplos.
Por imposição estatal, o cinto de segurança se tornou obrigatório para todo condutor, de
tal maneira que, automaticamente, ao entrarmos no carro, fazemos o gesto de colocar o cinto como se fosse algo natural. Que naturalidade é esta? A de uma lei que passou a vigorar, impondo a cada um uma conduta obrigatória determinada? Quando muito, caberia ao Estado informar que os acidentes de trânsito são mais letais para os condutores que não usam o cinto de segurança. Daí não se segue que o Estado deva impor essa regra à revelia dos indivíduos. Cada pessoa deveria poder escolher se quer ou não usar o cinto de segurança, assumindo as conseqüências daí advindas. Isto diz respeito exclusivamente a si e à sua vida, não tendo por que o Estado imiscuir-se nela. Uma situação totalmente diferente é a de uma pessoa dirigir alcoolizada a 180 km/hora, pois, neste caso, o que está em questão é a vida de uma outra pessoa e a liberdade de escolha alheia.
O Estado passa, agora, a determinar também que uma pessoa está de fato 'casada' pelo reconhecimento da união civil estável. Ou seja, se duas pes
soas passam a namorar regularmente ou vivem, por escolha própria, sob o mesmo teto, elas passam, por imposição estatal, a 'compartilhar' determinados 'direitos' e 'deveres' que são tornados obrigatórios pelo Estado. Este se arroga o direito de ditar a 'namorados' e 'compa nheiros' o que ele considera ser uma situação equivalente à do casamento, como se o Estado soubesse o que é melhor pa ra os indivíduos em questão.
Ora, se uma pessoa quer casar, basta fazer uma opção nesse sentido, indo ao cartório, assinando documentos e criando uma situação desse tipo, que é, então, reconhecida pelo Estado. A diferença essencial reside em que, num caso de reconhecimento da união civil estável, é o Estado que entra no domínio da vida privada, da liberdade de escolha, enquanto no outro, o do casamento, é a própria liberdade de escolha entre duas pessoas que é assumida enquanto tal. A liberdade e a responsabilidade são preservadas no segundo caso e suprimidas no primeiro. E tudo é feito em nome do 'progresso' dos costumes.
O espantoso é que uma tal situação não suscite maior espanto! A mais recente diz respeito à dita Lei do Desarmamento, que nada faz para desarmar os malfeitores nem enfrenta minimamente os graves problemas da segurança pública em nosso país. Os criminosos são deixados impunes, pois compram livremente no mercado negro o que necessitam. Prescindem, aliás, de revólveres de baixo ca libre, usando armas pesadas, que não são as que se encontram nas mãos dos cidadãos, que têm nestas uma opção de defesa pessoal. O governo começa por impor severas restrições ao registro e porte de ar mas e, fato inusitado, decide por um referendo relativo à sua comercialização, como se esta se tivesse tornado uma prioridade básica no País. Os problemas fundamentais não são enfrentados e o foco é desviado para uma questão secundária. Independentemente de que esses recursos gastos no re ferendo devessem ser mais bem aproveitados na própria segurança pública, de nova con ta entra em linha de consideração que o Estado sabe o que é melhor para os indivíduos.
Uma tal concepção pode che gar, inclusive, ao paroxismo, ao limite da tentativa de regrar o suicídio, como se mesmo essa li berdade de escolha, que pode ser considerada última, não pertencesse à esfera da vida privada. Um argumento apresentado pelos defensores do de sarmamento é que boa parte dos suicídios, no Brasil, é cometida com armas de fogo. Logo, sob esta ótica, as armas de fogo deveriam ser banidas. Um ra ciocínio deste tipo, levado ao absurdo, significaria abolir uma opção, por mais extremada que seja, ao simples manuseio de um objeto determinado, como se outros objetos não pudes sem exercer a mesma função. É o Estado determinando novamente o que é melhor para cada um, como se fôssemos indivíduos irresponsáveis, incapazes de decidir por nós mesmos.
Quando o Estado exorbita de suas funções, as liberdades são postas em questão. ?

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