Chalaça, ou conselheiro Gomes, foi secretário pessoal de dom Pedro 1º, além de secretário e contato com as amantes do imperador. Numa carta endereçada ao marquês de Barbacena, escrita do seu exílio na corte de Maria 2ª, em Lisboa, a 5 de agosto de 1835 -há não tão longos 170 anos-, ele protestava contra o seu desterro. Chalaça falava de corrupção política: "Lembro-me de que, quando embarcava, expulso do Brasil por obra sua, senhor marquês, ouvia-se o eco da promessa de que a era da roubalheira tinha se acabado e que seu ministério faria o Brasil mergulhar num mar de felicidades nunca antes imaginadas".
Chalaça escreveu: "Que horror o transporte de uma pequena fortuna em libras esterlinas na cueca!" |
E continuava: "Mas, se tudo está vazando, senhor marquês, é porque o amadorismo e a indiscrição de alguns comprometeram o desempenho de um time que se julgava inexcedivelmente profissional". Arrematando, dizia: "Que horror o transporte de uma pequena fortuna em libras esterlinas na cueca!". Mais adiante, Chalaça citava Calderón de Mejia -"O homem e as coisas tríplices-", pedindo a Barbacena: "Aconselhe seus políticos amigos, caro marquês, com estes conselhos contidos no livro: o homem deve imitar três exemplos, cada qual vindo de um reino da natureza. Dos minerais, deve aprender com a água, que obedece à forma do cálice que a contém; entre os vegetais, deve ser como a orquídea, que cresce à sombra das grandes árvores; e do mundo animal, deve se espelhar na hiena, que segue os leões e não conhece a fome".
Lembrei-me da carta de Chalaça neste processo de crise, de escolha do presidente da Câmara dos Deputados e da dança partidária dos parlamentares. Não quero comparar Chalaça a Jeany Mary Corner, a promotora de festas. Ele servia a um só senhor. O caso da cueca não pode deixar de gritar por analogias. Assim como o amadorismo na corrupção e a decadência de um ministério cercado de expectativas.
Mas o que chama mais a atenção são os conselhos de Calderón de Mejia. A dança dos partidos e a acomodação às generosas ofertas palacianas cabem perfeitamente na remissão que Chalaça faz aos políticos de Barbacena. São como a água, se ajustam ao poder; são como as orquídeas, se abrigam nas copas do poder; e são como as hienas, ficam com as migalhas do banquete dos leões no poder (sem o sentido palocciano).
Pensei que os sinais de poder emitidos pelo PSDB para 2006 levassem deputados naquela direção. Mas não foi assim. Depois, concluí: bem, tanto faz. Se o cálice for outro, se a árvore for outra e se forem outros os leões, eles terão a plasticidade da água, o telurismo das orquídeas e a conformidade agressiva das hienas. Mas cuidado: que o cálice, a árvore e os leões de hoje não se sintam tranqüilos. A cada momento, terão de repetir as mesmas ofertas de espaço, de sombra e de resíduos para manter sua base, digamos, aliada.
E acompanhem bem as pesquisas e os sinais da sucessão. Afinal, uma boa parte dos que entraram no jogo das cadeiras foi para um abrigo suficientemente plástico, para se ajustar a qualquer conjuntura. E não apenas no Congresso, como também na mais alta hierarquia do governo eleito. Fico imaginando se o ideal de partido para o "homem" de Calderón de Mejia, citado por Chalaça, não é aquele que seja ao mesmo tempo governo e oposição, de direita e de esquerda...
Não será difícil contar e afirmar que a bancada majoritária é esta: a suficientemente flexível, plástica, ambulantemente metamórfica, parodiando Raul Seixas. Lembro-me de uma entrevista concedida em "off" por um conhecidíssimo fornecedor do Estado do Rio de Janeiro, já morto. Quando o repórter lhe perguntou quanto gastava em campanhas eleitorais, respondeu: "Nada! Compro pronto!". Ou seja, depois de eleito.
Quantas reformas políticas e eleitorais purificadoras ocorreram nestes últimos 170 anos? Por isso, a principal reforma é a Constituição minimalista proposta décadas atrás, aquela que teria apenas dois artigos: "Artigo 1º: todo brasileiro terá vergonha na cara. Artigo 2º: revoguem-se as disposições em contrário".
Na semana passada, no Festival de Cinema do Rio, o cineasta espanhol Carlos Saura dizia num almoço, dirigindo-se a um colega italiano: "Bom mesmo é o seu país, que não precisa de governo". Bem... Infelizmente, estamos longe dessa perfeição.