No jornalismo há muitos tipos de fraude. O mais banal é ofuscar os leitores com um título, na esperança de que não leiam a matéria ou não percebam que ela o desmente.
''A maioria das armas do crime teve origem legal'', proclama O Globo de 4 de outubro. No cérebro do leitor, a conclusão é instantânea: o grosso da violência no Brasil não é causado pelos criminosos assíduos, mas por pessoas de bem que ''matam por motivos fúteis''. Urge portanto desarmá-las. Desarmar os bandidos é secundário.
No texto, a informação, baseada numa pesquisa da polícia carioca, não é bem essa: é que, ''de um total de 86 mil armas apreendidas de criminosos desde 1999, 33% eram do chamado estoque legal - com registro... Outras 39% eram do estoque informal - originalmente pertenciam a pessoas sem antecedentes criminais, mas nunca foram registradas. Apenas 28% tinham origem criminosa... Do total de armas registradas, cerca de dois terços pertenciam a pessoas físicas, um terço ao Estado (polícias, Forças Armadas etc.)''.
Basta você ler com atenção e a fraude embutida salta do pacote gritando: ''Surpresa!'', como aquelas garotas do bolo de aniversário nos filmes de máfia. Armas sem registro não provêem do comércio lícito. Estão fora da lei. Classificá-las eufemisticamente de ''informais'' não modifica em nada a sua condição. Portanto, 67% das armas apreendidas eram ilegais. Sessenta e sete? Nada disso. Dos 33% restantes, um terço pertencia ao Estado. Sobram 22% de armas lícitas roubadas. Setenta e oito por cento das armas usadas na prática de crimes ao longo de seis anos eram de origem ilegal. Exatamente o contrário do que diz o título.
O jornal ainda reforça a informação errônea explicitando a sua conclusão, para maior didatismo do engano: ''Para Rubem César Fernandes, do Viva Rio, a pesquisa é um argumento único a favor do desarmamento no Brasil.'' Único no sentido de ímpar, inigualado, lindão mesmo.
Aí o engodo aparentemente simples do título sobe às alturas de uma fraude lógica requintada. Pois aqueles 22% abrangem somente armas de origem legal que passaram às mãos de criminosos. Não incluem de maneira alguma as que permanecem em poder de seus donos legítimos - aqueles mesmos cidadãos de bem que matam por nada, por frescura, em transes repentinos e inexplicáveis. Se estes e não os bandidos, segundo o discurso desarmamentista, são os responsáveis pela maior quota de crimes com armas de fogo, então é óbvio que, quanto mais armas são roubadas dessas perigosas criaturas e postas a serviço da bandidagem, mais diminui o poder de fogo da parcela mais perigosa da sociedade. O roubo de armas, nessa perspectiva, é uma ajuda providencial que os delinqüentes dão à manutenção da ordem pública. A análise do discurso desarmamentista revela implacavelmente essa premissa maior oculta. O desarmamentista coerente, em busca de um ''argumento ímpar'' para a proibição do comércio de armas, o encontraria portanto num índice baixo, e não alto, de armas legais roubadas. O índice é realmente baixo, como o demonstra a pesquisa. Mas a premissa maior é imoral e absurda demais para ser declarada em voz alta. Para tornar o silogismo digerível é preciso então uma dupla camuflagem: inverter as proporções no título e em seguida convocar Rubem César para tirar delas uma conclusão também invertida. Tudo parece lógico e veraz, quando é completamente irracional e falso.
É que a inverdade, por si, às vezes não pega. Para aumentar sua aderência é preciso acrescentar-lhe uma dose de absurdo. Não basta mentir: é preciso estontear a vítima para que, mesmo percebendo vagamente a mentira, não consiga discerni-la da verdade.
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João Figueiredo: missão cumprida'', coletânea organizada por Gilberto Paim, com colaborações de Paulo Mercadante, Jarbas Passarinho e outros (Rio, Escrita, 2005), é um ato de coragem. É preciso uma lucidez destemida para admitir o que no fundo todo mundo sabe: que, comparado a Lula, Figueiredo foi um ótimo presidente.