"Só andava armado, tinha um filho
de 2 meses, usava drogas, traficava e
assaltava – e o guri só tinha 14 anos."
O país se prepara para votar num referendo sobre armas e, no entanto, quase nada sabemos sobre a violência que tomou conta da alma brasileira. Quem tem interesse em conhecer um pouco mais sobre a criminalidade, sobre a pobreza, sobre jovens favelados, sobre a arrogância policial, sobre o tráfico de drogas – enfim, numa palavra: sobre a violência brasileira – deveria atravessar as 295 páginas de Cabeça de Porco, livro lançado há poucos meses e que resultou da improvável parceria entre um rapper famoso (MV Bill), um empresário de hip hop (Celso Athayde) e um festejado antropólogo (Luiz Eduardo Soares). Cabeça de Porco é um soco no estômago. As páginas mais devastadoras narram as incursões de MV Bill e Celso Athayde em favelas de norte a sul do Brasil.
Nesses relatos, descobre-se que:
• Nas favelas do Rio Grande do Sul, não existem facções criminosas, o que não é necessariamente uma boa notícia. A ausência de quadrilhas organizadas faz com que as guerras e rivalidades sejam descontroladas e imprevisíveis. Fora isso, o resto é igual. Escreve MV Bill: "Tudo sempre igual, tristemente igual e, ao mesmo tempo, diferente. Especialmente ali. Ver aqueles moleques armados e falando baaá!, tchê!, tri!, era uma outra história de crime para mim".
• Numa favela em Belém do Pará, no outro extremo do país, uma história muito parecida. MV Bill escreve que conheceu ali um morador que "só andava armado, tinha um filho de 2 meses, usava drogas, traficava e assaltava – e o guri só tinha 14 anos".
• Uma favela de Joinville, no interior de Santa Catarina, reproduz o dialeto dos morros do Rio de Janeiro, num espantoso processo de nacionalização do modelo carioca de violência. Em Joinville, os moradores da favela chamam seus inimigos de "alemão", dizem pertencer ao "Comando Vermelho" e que seus inimigos integram o "Terceiro Comando". Escreve Celso Athayde: "Era a primeira vez que tínhamos visto um caso como esse, parecia que os comandos do Rio de Janeiro tinham franchaises espalhadas por lá".
• Uma favela em Curitiba, não muito longe do centro da cidade, reproduz não o dialeto mas a própria organização dos morros cariocas. Usa até os "fogueteiros", nome dado aos meninos que ficam à entrada da favela encarregados de soltar fogos de artifício para avisar da chegada da polícia. Escreve MV Bill: "Garotos com aparência de 12, 13, 10 anos, ocupavam lugares estratégicos nas lajes, com fogos de 12 x 1. Não acreditei, pensei que isso fosse cultura carioca. Mas não! E lá estavam os fogueteiros da boca, no Sul".
São apenas alguns exemplos, e o livro é cheio de outros em Brasília, no Rio ou em Aracaju, mostrando como a violência se espalha, se multiplica, se capilariza pelos morros e favelas brasileiras, condenando o futuro de uma parte expressiva da juventude do país – a parte, é claro, negra, parda e pobre. Cabeça de Porco, sobretudo nos textos escritos por Luiz Eduardo Soares, humaniza os favelados envolvidos no tráfico sem absolvê-los dos crimes que cometem e acaba sendo um convite à esperança e à luta – mas é impossível chegar ao fim do livro sem fazer a pergunta cruel: será que este país tem jeito?