Neste momento difícil, qual poderia ser a postura daqueles que pensam, com serenidade, no Brasil e seu futuro, que não estão eufóricos celebrando e não desejam - ao contrário - se deixar levar pela onda de desencanto e ceticismo, para não dizer cinismo, em relação ao mundo da política?
Em primeiro lugar, agradecer o fato de que nossa mídia cresce extraordinariamente nas crises, em termos de extensão, qualidade e profundidade de sua cobertura e interpretação dos fatos. Pode haver excessos, mas é importante manter sempre viva a lição de Hypólito da Costa: "A imprensa livre corrige-se a si mesma, porque não pode haver razão para que a mentira, sendo tão livre quanto a verdade, prevaleça contra esta."
Em segundo lugar, reafirmar que não é desejável nem possível generalizar: não há uma "irmandade do tudo igual". Assim como há biltres, mequetrefes e peralvilhos em todas as profissões, também os há em todos os partidos políticos. Mas há gente honesta, decente, responsável, de espírito público, com séria preocupação social, em todos os grandes partidos. Um dos enormes erros do PT foi o de tentar vender, exaustivamente, a idéia de que só os haveria no PT. Apenas lá - ou entre simpatizantes - estariam os verdadeiros puros e os detentores de um saber a outros negado: o assim chamado "modo petista de governar", que justificaria o aparelhamento do Estado, para realizar "grandes coisas" (Niccolò). Como estamos vendo, duros podem ser os encontros com o mundo real. Mas o País poderá sair melhor deste penoso aprendizado coletivo, como sugerem reações recentes, inclusive do presidente Lula. E, assim como a imprensa livre se corrige a si mesma, um eleitorado livre e bem informado também pode fazê-lo .
No Brasil dos últimos 80 anos, apenas dois presidentes civis, eleitos diretamente pelo voto popular, passaram seu cargo a outros presidentes civis, também diretamente eleitos: JK e FHC. Lula será o terceiro, e é importante que seja assim, para o bem da democracia no Brasil. Seu segundo Gabinete, após o de Dirceu, está sendo gradualmente anunciado, juntamente com indicações de que é com ele que o presidente pretende ir até as eleições de outubro de 2006. Nas quais o atual governo se apresentará ao eleitorado com sua própria herança de quatro anos. Ao que tudo indica, a melhor parte desta herança estará menos nas áreas política e social e mais na área econômica (ajudada por uma situação internacional favorável, pela coerência do ministro Palocci e por avanços logrados por administrações anteriores). Paradoxalmente, é o êxito desta área mais criticada pelo fogo amigo do governo que ainda faz de Lula o candidato favorito à sua própria sucessão. Portanto, a questão econômica estará no centro do debate ao longo do que resta do mandato do atual presidente.
No Brasil de hoje, é fundamental um esforço para aprofundar o entendimento coletivo sobre a relação entre gasto público, carga tributária e estoque da dívida pública. Por três razões: primeiro, porque uma sociedade moderna julga uma determinada carga tributária em função do que recebe como contrapartida em termos de quantidade e qualidade dos serviços públicos prestados; segundo, porque uma sociedade deve analisar a extensão em que o nível e a composição tanto do gasto público como da carga tributária afetam a eficiência da economia (da qual depende o crescimento econômico) e a redução da pobreza e melhoria das condições da vida da população (que expressam o estágio de desenvolvimento social alcançado); terceiro, o nível e a composição da dívida pública, e sua trajetória ao longo do tempo, definem as cruciais perspectivas de solvência do setor público, o espaço aberto ao investimento privado e as expectativas quanto à redução dos juros reais. Portanto, dívida, tributação, gasto público, eficiência e eqüidade são temas inter-relacionados e que estarão no centro do debate público sobre crescimento no Brasil ao longo dos próximos meses - e anos.
Este debate vem avançando entre nós. Por exemplo, há um crescente reconhecimento de que, no contexto atual, há cinco "coisas" que são inaceitáveis e equivocadas na área de finanças públicas. Primeiro, o Brasil não deve aumentar sua carga tributária como proporção do PIB, hoje uma das maiores, se não a maior dentre os países em desenvolvimento. Segundo, o Brasil não deve e não pode aumentar o endividamento público; muito antes pelo contrário, deve ter uma estratégia de contínua redução gradual da relação dívida/PIB, com o objetivo de convergir para menos de 40% do PIB em 2010, conforme aprovado por presidentes e ministros da Fazenda do Mercosul mais Chile e Bolívia, em dezembro de 1999. Terceiro, é inaceitável para a sociedade brasileira o retorno da inflação como mecanismo de financiamento de gastos públicos. Quarto, o Brasil não deve e não pode reduzir ainda mais a proporção do investimento público como proporção de gasto primário total em seu processo de consolidação fiscal. Quinto, embora seja unânime o desejo nacional por taxas de juros nominais e reais mais baixas, sabe-se hoje que não se as baixam por decreto presidencial ou puros atos de voluntarismo, mas criando condições para tal.
A conclusão inescapável: é fundamental avançar na direção de mudanças legais, práticas de gestão e procedimentos operacionais que permitam reduzir significativamente, e de maneira crível, as taxas de expansão dos gastos totais de consumo do governo ao longo dos próximos anos.
Não será nada fácil, nunca foi e nunca será. Mas, dentre as alternativas, esta é hoje a melhor saída, tanto para o governo recompor sua alma quanto para o País recuperar "a fé no que virá e a alegria de poder olhar para trás", com a sensação de que se ergueu à altura dos seus desafios.
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