Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, julho 11, 2005

Caras frustradas Gaudêncio Torquato

O ESTADO DE S.PAULO

 

Pois é, até o motorista que faltava para fechar o círculo do mensalão já apareceu, fazendo tudo parecer muito igual à tenebrosa era Collor. É verdade que os caras-pintadas daqueles tempos se banham hoje nas águas da decepção. Parece que foi ontem que estampavam nas ruas um cívico orgulho, fazendo das cores da Bandeira Nacional um símbolo de combate à corrupção. Mas os traços verde-amarelos em diagonal já não incitam à mobilização, deixando de enfeitar as cabeças de uma juventude que sonhava. A montanha de lama que conspurca agentes e instituições da República escandaliza a sociedade, que se afasta da classe política. Os jovens da pátria lulista afundam as desesperanças no poço da descrença, somando sua indiferença à perplexidade de milhões de brasileiros, de todas as classes, que acompanham as cenas de pugilato verbal, em Brasília, sem entender quem está contra quem e sem distinguir o âmbito de cada esfera de apuração.

É verdade que Lula não é Collor, tanto pela origem quanto pela aguerrida trajetória na construção de um partido que empunhava a bandeira das mudanças, fincando sólidas raízes no terreno da ética. Escudado em sua história, o presidente construiu uma blindagem em torno da imagem reforçada com o aço do carisma pessoal. Mas a identidade do pernambucano pobre e ex-metalúrgico Luiz Inácio, tida como retilínea, não é suficiente para desmanchar as coincidências entre um passado irrevogável, cheio de casos mal contados, e um presente verdadeiro, saturado de histórias escabrosas. E ilustrado pela estrela vermelha do partido do mandatário-mor do País.

A malha de corrupção está à vista. Indícios de propinas para cooptação de parlamentares são fortíssimos. Lideranças petistas freqüentam o centro das suspeitas. O homem que cristalizava o ideal petista no governo, José Dirceu, era o mais próximo auxiliar do presidente, a ponto de sempre recorrer ao dito: "Não faço nada que não seja de comum acordo com Lula." Sob esse pano de fundo, é difícil crer que o presidente não tenha sabido do que se passava ao seu redor nem tomado conhecimento do modus operandi, amplamente difundido nos meios de formação de opinião, que o PT estabeleceu para viabilizar um ambicioso projeto de poder.

O sistema teria sido levado ao plano federal após experimentado no âmbito de prefeituras chefiadas por petistas, apontando-se o caso de Santo André e o assassinato do prefeito Celso Daniel, até hoje não explicados por completo, como referência e extensão da estratégia de amealhar recursos para as campanhas do partido. Caso tal versão se confirme, pode-se inferir que o PT entrou numa grande armadilha, na medida em que o gigantismo e a complexidade da administração federal, com seus fluxos burocráticos, divisões de pedaços por partidos e caciques, quadros corruptos, lobistas ambiciosos e licitações viciadas, propiciam condições ideais para o vazar de informações, denúncias e querelas, a partir de interesses contrariados das partes. É ingênuo imaginar que a máquina governamental pudesse ser um ente uniforme, sem ruídos e rupturas, plenamente dominado pelo partido. Um dia a casa teria de cair. E caiu.

E, agora, Josés (Genoino e Dirceu)? PT dividido, escorraçado de espaços que considerava legitimamente seus, como o da Saúde; presidente refém de bancadas fisiológicas; partidos repartidos e enlameados; lenha jogada todo dia na fogueira de denúncias e escândalos; governistas e oposicionistas travando duelo de vida ou morte nas CPIs e olhando para a perspectiva eleitoral de 2006 - essa é a receita da indigestão que ameaça o futuro político de Lula e o projeto de poder do PT, uma sigla que vai comer, por muito tempo, o pão que o diabo amassou. Do lado da sociedade, os efeitos da crise também são catastróficos, basta perceber as vozes de indignação que se ouvem de todo lado. Nunca foi tão grande o fosso que separa a sociedade da classe política. Não porque a percepção sobre a teia de corrupção seja hoje mais forte. Pode-se até aduzir que a ilicitude era maior no passado, quando a base de fiscalização e defesa da sociedade era menor e mais frágil. Mas a decepção assumiu proporções fantásticas pelo fato de que o propinoduto encontrou terra fértil nas cercanias do petismo-lulismo, até então consideradas sagradas e intocáveis.

Não pode ser virtuoso aquele que foi engendrado num ventre impuro, ensinam as Escrituras. O pressuposto nos dá algumas indicações. A primeira é a de que será impossível, pelo menos no curto prazo, extrair do ventre impuro do corpo petista frutos virtuosos. O conceito ético e moral do governo está conspurcado. A confiança no Executivo se esgarça. Esse sentimento ganha força pela percepção de que a capacidade do Estado brasileiro de suprir as necessidades fundamentais da maioria da população, particularmente nos campos a que não tem acesso - saúde, educação, segurança, habitação -, não aumentou no governo Lula. Por isso mesmo, a reforma ministerial não terá nenhum efeito positivo sobre o pensamento nacional, principalmente quando a nova construção é feita com tijolos do fisiologismo.

No Congresso, governistas e oposicionistas se engalfinham num processo de canibalização recíproca. Governistas querendo desqualificar os depoentes são desqualificados pelos núcleos racionais que acompanham as investigações. Oposicionistas pecam por excesso verbal e também perdem. Ademais, a quantidade de instâncias investigatórias, ao gerar profusão de denúncias, informações e versões, acaba gerando algaravia, mas não diminui a impressão de que o País está de ponta-cabeça e de que a República está na lama. Vergonha, indignação, perplexidade, ladroagem, quadrilhas, mensalão, corrupção, desmoralização - eis o começo da ladainha que a boca do povo volta a recitar para frustração dos caras-pintadas que, um dia, ousaram sonhar.

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