É verdade que Lula não é Collor, tanto pela origem quanto pela aguerrida trajetória na construção de um partido que empunhava a bandeira das mudanças, fincando sólidas raízes no terreno da ética. Escudado em sua história, o presidente construiu uma blindagem em torno da imagem reforçada com o aço do carisma pessoal. Mas a identidade do pernambucano pobre e ex-metalúrgico Luiz Inácio, tida como retilínea, não é suficiente para desmanchar as coincidências entre um passado irrevogável, cheio de casos mal contados, e um presente verdadeiro, saturado de histórias escabrosas. E ilustrado pela estrela vermelha do partido do mandatário-mor do País.
A malha de corrupção está à vista. Indícios de propinas para cooptação de parlamentares são fortíssimos. Lideranças petistas freqüentam o centro das suspeitas. O homem que cristalizava o ideal petista no governo, José Dirceu, era o mais próximo auxiliar do presidente, a ponto de sempre recorrer ao dito: "Não faço nada que não seja de comum acordo com Lula." Sob esse pano de fundo, é difícil crer que o presidente não tenha sabido do que se passava ao seu redor nem tomado conhecimento do modus operandi, amplamente difundido nos meios de formação de opinião, que o PT estabeleceu para viabilizar um ambicioso projeto de poder.
O sistema teria sido levado ao plano federal após experimentado no âmbito de prefeituras chefiadas por petistas, apontando-se o caso de Santo André e o assassinato do prefeito Celso Daniel, até hoje não explicados por completo, como referência e extensão da estratégia de amealhar recursos para as campanhas do partido. Caso tal versão se confirme, pode-se inferir que o PT entrou numa grande armadilha, na medida em que o gigantismo e a complexidade da administração federal, com seus fluxos burocráticos, divisões de pedaços por partidos e caciques, quadros corruptos, lobistas ambiciosos e licitações viciadas, propiciam condições ideais para o vazar de informações, denúncias e querelas, a partir de interesses contrariados das partes. É ingênuo imaginar que a máquina governamental pudesse ser um ente uniforme, sem ruídos e rupturas, plenamente dominado pelo partido. Um dia a casa teria de cair. E caiu.
E, agora, Josés (Genoino e Dirceu)? PT dividido, escorraçado de espaços que considerava legitimamente seus, como o da Saúde; presidente refém de bancadas fisiológicas; partidos repartidos e enlameados; lenha jogada todo dia na fogueira de denúncias e escândalos; governistas e oposicionistas travando duelo de vida ou morte nas CPIs e olhando para a perspectiva eleitoral de 2006 - essa é a receita da indigestão que ameaça o futuro político de Lula e o projeto de poder do PT, uma sigla que vai comer, por muito tempo, o pão que o diabo amassou. Do lado da sociedade, os efeitos da crise também são catastróficos, basta perceber as vozes de indignação que se ouvem de todo lado. Nunca foi tão grande o fosso que separa a sociedade da classe política. Não porque a percepção sobre a teia de corrupção seja hoje mais forte. Pode-se até aduzir que a ilicitude era maior no passado, quando a base de fiscalização e defesa da sociedade era menor e mais frágil. Mas a decepção assumiu proporções fantásticas pelo fato de que o propinoduto encontrou terra fértil nas cercanias do petismo-lulismo, até então consideradas sagradas e intocáveis.
Não pode ser virtuoso aquele que foi engendrado num ventre impuro, ensinam as Escrituras. O pressuposto nos dá algumas indicações. A primeira é a de que será impossível, pelo menos no curto prazo, extrair do ventre impuro do corpo petista frutos virtuosos. O conceito ético e moral do governo está conspurcado. A confiança no Executivo se esgarça. Esse sentimento ganha força pela percepção de que a capacidade do Estado brasileiro de suprir as necessidades fundamentais da maioria da população, particularmente nos campos a que não tem acesso - saúde, educação, segurança, habitação -, não aumentou no governo Lula. Por isso mesmo, a reforma ministerial não terá nenhum efeito positivo sobre o pensamento nacional, principalmente quando a nova construção é feita com tijolos do fisiologismo.
No Congresso, governistas e oposicionistas se engalfinham num processo de canibalização recíproca. Governistas querendo desqualificar os depoentes são desqualificados pelos núcleos racionais que acompanham as investigações. Oposicionistas pecam por excesso verbal e também perdem. Ademais, a quantidade de instâncias investigatórias, ao gerar profusão de denúncias, informações e versões, acaba gerando algaravia, mas não diminui a impressão de que o País está de ponta-cabeça e de que a República está na lama. Vergonha, indignação, perplexidade, ladroagem, quadrilhas, mensalão, corrupção, desmoralização - eis o começo da ladainha que a boca do povo volta a recitar para frustração dos caras-pintadas que, um dia, ousaram sonhar.
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