Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 16, 2005

VEJA Roberto Pompeu de Toledo


O futebol nas malhas do subdesenvolvimento

O caso de Robinho é o último exemplo
da
submissão brasileira ao império das
metrópoles da bola

Quando o Brasil ganhou a Copa do Mundo de 1958, Nelson Rodrigues decretou o fim de nosso complexo de vira-latas. "Já ninguém tem vergonha de sua condição nacional", escreveu. "E as moças na rua, as datilógrafas, as comerciárias, as colegiais, andam pelas calçadas com um charme de Joana d'Arc." O próprio Nelson, antes, usando o precioso laboratório de análise do futebol, diagnosticara o complexo de vira-latas, traduzido pela "inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo". A primeira vitória numa Copa do Mundo teria operado até mesmo o milagre da reversão do país de analfabetos que éramos então num país de letrados. Escreveu Nelson: "Se analfabetos existiam, sumiram-se na vertigem do triunfo. A partir do momento em que o rei Gustavo da Suécia veio apertar as mãos dos Pelés, dos Didis, todo mundo aqui sofreu uma alfabetização súbita. Sujeitos que não sabiam se gato se escreve com 'x' iam ler a vitória no jornal".

Pois a notícia que hoje cabe levar ao grande cronista e dramaturgo, lá no assento etéreo onde repousa, é que, quase meio século depois da redentora vitória na Suécia, a condição de vira-latas abateu-se de volta, implacável e sinistra, sobre nós. E não por causa do mensalão, dos Delúbios e dos Valérios. Ou melhor, por isso também, mas, e é isto que aqui vai nos interessar, por força do mesmo futebol que Nelson Rodrigues imaginou com poderes para resgatar a dignidade da pátria. Está aí o caso de Robinho, a última grande revelação dos gramados brasileiros, para prová-lo.

Robinho, para quem não sabe, quer jogar no Real Madrid. A diferença, com relação aos tempos de Nelson Rodrigues, começa por aí. Pelé nunca quis jogar no Real Madrid. Hoje, craque brasileiro só se sente feliz ao mudar para o exterior. E não só para a Espanha ou a Itália. Qualquer Turquia serve. Robinho tem um contrato com o Santos que estipula multa de 50 milhões de dólares para ser rompido. O Real Madrid dispõe-se a pagar 25 milhões de dólares. Claro que depois se for revender o jogador o Real Madrid exigirá os 50 milhões e mais alguma coisa. Mas para um time brasileiro? O Brasil que se enxergue. Paga a metade e olhe lá. Robinho decidiu que não joga mais no Santos e se ausentou dos jogos e dos treinos. Ele e o Real Madrid estão numa campanha para o Santos baixar o preço. Até a semana passada, o Santos resistia, mas até quando? O Santos era o lado vira-latas da questão. Tinha tudo para perder.

A imagem do capitão Bellini erguendo a taça Jules Rimet, no estádio Solna, em Estocolmo, congelou-se num épico nacional. Para o orgulho brasileiro, equivaleu, digamos, à imagem dos soldados americanos fincando sua bandeira na Ilha de Iwo Jima. Outro conhecido profissional de imprensa da época, o humorista Don Rossé Cavaca, escreveu que, em matéria de futebol, "subdesenvolvidos são os europeus". A palavra "subdesenvolvido" estava no auge. Não tinham entrado em cena eufemismos como "em desenvolvimento" ou "emergente". O Brasil era subdesenvolvido mesmo, e como doía!

Pois a notícia a transmitir, via ondas da eternidade, a Cavaca, que como Nelson repousa no assento etéreo, é que regredimos, no futebol, ao estado de puro subdesenvolvimento. O Brasil é um reles fornecedor de matéria-prima. E quem determina o preço, como no caso dos botocudos que plantam cana-de-açúcar ou café, é o comprador estrangeiro. Os clubes nacionais começam os campeonatos com um determinado elenco e ao longo dele vão perdendo pedaços. Quando se trata de promover um campeonato de seleções, escolhe-se o mês de recesso dos campeonatos europeus. Já os campeonatos brasileiros... ora, os campeonatos brasileiros. O universo do futebol arma-se de acordo com os interesses das metrópoles.

O dinheiro, claro, é fator determinante nesse panorama, mas não é o único. O subdesenvolvimento no futebol, como todo bom subdesenvolvimento, começa nas cabeças. "Quero jogar no melhor time do mundo", diz Robinho, justificando sua preferência pelo Real Madrid. O tal "melhor time do mundo" não ganhou um único campeonato no último ano, mas vá lá – o Real Madrid é o Real Madrid. Outros vão para o Fenerbahce, da Turquia, ou o Dínamo, da Ucrânia. Importa mesmo é fugir do Santos, do Flamengo, do Cruzeiro. Prestigioso é o Lokomotiv Plovdiv, da Bulgária. Argumento corrente, entre torcedores e jornalistas esportivos, é que Robinho deve jogar na Europa "para amadurecer". Nem Pelé nem Tostão nem Gérson precisaram ir à Europa para amadurecer. Como é da lógica do subdesenvolvimento, as mentes subjugaram-se uniformemente aos imperativos das metrópoles.

 

P.S.: Esta página nesta semana escapou do mensalão, mas não foi longe. Ficou no tema do escândalo. Além do escândalo configurado pela situação do futebol brasileiro em si, também aqui há transações nebulosas, intermediários suspeitos e dinheiro que corre por obscuras vias. A Polícia Federal, tão pressurosa ultimamente, bem poderia voltar sua atenção para as transferências de jogadores para o exterior. Podia começar com o caso de Robinho.

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