Depois de dizer que sacava dinheiro
vivo para comprar gado e negar que
tinha avalizado empréstimos ao PT,
Valério inventa uma história que lembra
um dos piores momentos da era Collor
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O governo vinha enfrentando problemas para fornecer à opinião pública uma resposta coerente às denúncias de corrupção que corroem dia-a-dia sua credibilidade. A última delas revelou que não apenas deputados de outros partidos, mas também do próprio PT, sacavam dinheiro vivo das contas do empresário mineiro Marcos Valério na agência do Banco Rural em Brasília. Seria uma espécie de "mesadão", uma variação do mensalão, só que pago como um mimo para custear as despesas pessoais dos próprios integrantes do partido. Na semana passada, pela primeira vez desde o início dos escândalos, notou-se uma resistência organizada do petismo às provas que se avolumam contra ele. Peça central desse movimento de resistência, Marcos Valério ofereceu espontaneamente na quinta-feira ao procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, "colaboração" nas investigações em troca de benefícios numa eventual condenação criminal. Até então, Valério limitava-se a negar a existência do mensalão. Protegida pelo sigilo, sua conversa com o procurador motivou especulações de que, arrependido e disposto a colaborar com as investigações, Valério teria admitido todos os crimes dos quais vem sendo acusado e, ainda, apontado o ex-tesoureiro Delúbio Soares como o mentor intelectual do processo de compra de deputados em troca de apoio político e de locupletação descarada de parlamentares do próprio PT – o recém-desvendado "ciclo Valério" de apropriação de recursos públicos, em que o dinheiro sai do governo para as agências de Valério por meio de contratos de publicidade e, sacado na boca dos caixas do Banco Rural e do Banco do Brasil, volta a parlamentares pelo mensalão e pelo mesadão.
Os rumores de que Valério enfim teria se arrependido duraram pouco. Numa indicação de que não confiou na conversa do empresário, o procurador Antonio Fernando Souza recusou o acordo por suspeitar das reais intenções dele. Na sexta-feira, a hipótese de que o operador do mensalão – e do mesadão do PT – teria aberto o bico virou pó. O próprio empresário, em entrevista ao Jornal Nacional, contou uma história da carochinha. Sua nova versão é basicamente a seguinte: a pedido de Delúbio, Valério teria contraído vários empréstimos bancários em nome de suas agências de publicidade no período de 2003 a 2005; esses empréstimos serviriam para saldar dívidas relacionadas a campanhas eleitorais e teriam sido transferidos para o PT e para pessoas e empresas indicadas por Delúbio; esses empréstimos seriam a única fonte dos monumentais saques em dinheiro feitos das contas de suas agências de publicidade. Valério continuou negando a existência do "mensalão" e não quis responder a duas das mais óbvias dúvidas advindas de sua entrevista. Como Valério esperava cobrar do PT os empréstimos que contraiu em nome de suas empresas a pedido do partido? Resposta: "Vamos tentar negociar com a nova direção do Partido dos Trabalhadores. Foram empréstimos legais". Quais os nomes das pessoas autorizadas por Delúbio a retirar o dinheiro dos empréstimos? Resposta: "Não posso responder, prometi sigilo absoluto (ao procurador)".
De concreto, a nova versão de Valério tem pouco arrependimento e muita estratégia. Dois objetivos são claros. Com a menção aos empréstimos ("foram vários"), Valério aponta finalmente uma explicação para a frenética movimentação de recursos e para os vultosos saques em contas de suas empresas. Não é a primeira vez que políticos e empresários pegos com a mão na massa recorrem a empréstimos fantásticos para justificar a origem de dinheiro que mais parece produto de corrupção. Em meio às denúncias que brotaram durante a CPI do PC, o então presidente Fernando Collor de Mello se viu diante de um problema aparentemente insolúvel: explicar de onde vinha o dinheiro com que sustentava seu altíssimo padrão de vida. Como não podia admitir que estava sendo financiado por um esquema de corrupção, Collor criou uma enorme farsa que foi batizada por seu secretário, Cláudio Vieira, de Operação Uruguai. O ex-presidente disse que havia conseguido um empréstimo de 5 milhões de dólares, em valores da época, com uma empresa de Montevidéu – e assim obtido o dinheiro com que pagava suas contas nababescas. O plano só não deu certo graças a Sandra Oliveira, secretária da empresa ASD, do empresário Alcides Diniz, que declarou na CPI ter presenciado reuniões nas quais os documentos apresentados por Collor em sua defesa haviam sido forjados.
Há diferenças importantes entre a Operação Uruguai I e a de número II, de Valério, Delúbio e cia. Na primeira, os empréstimos não existiram. Na segunda, eles provavelmente existem. Aliás, não só existem como, segundo especialistas em crimes financeiros, podem ter sido feitos com o único propósito de esquentar parte do dinheiro de corrupção ou do caixa dois do PT. O esquema funcionaria assim: bancos emprestam dinheiro a Marcos Valério ou ao PT, com o aval do empresário; o PT nunca devolve o dinheiro; apesar disso, Valério não fica com o prejuízo – ao contrário, recursos vindos de origem suspeita (paraíso fiscal, malas de dinheiro ou contas de laranjas) ingressam nas contas de suas empresas e são usados para quitar os empréstimos. Com esse mecanismo, o PT justifica recursos que, aparentemente, caem do céu. Os bancos são pagos e Valério nunca cobra o partido.
O segundo objetivo do empresário com sua entrevista ao Jornal Nacional foi antecipar-se ao inevitável. Mais cedo ou mais tarde aparecerão provas definitivas de que parlamentares e dirigentes do PT foram beneficiados com o mesadão. Com a afirmação de que ele contraíra empréstimos legais para ajudar o PT, a pedido de Delúbio, pode-se justificar o esquema da seguinte maneira: o partido pega um empréstimo bancário, mesmo que indireto, e o repassa a seus parlamentares. O problema nessa estratégia é que ela tenta eliminar uma pergunta básica: o que Valério teria como retribuição de tanto desprendimento? Ele disse, na entrevista ao Jornal Nacional, que "Delúbio nunca, em momento nenhum, nos beneficiou em nada". Só que a agência SMPB, de Valério, foi agraciada com 144,4 milhões de reais em contratos de publicidade com o governo. Se isso não é retribuição, Valério não é carequinha. E ninguém garante que uma boa parte desses recursos não tenha voltado para quem os concedeu.
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