Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 16, 2005

VEJA Quanto, quando e o que Lula soube

Quanto ele sabia?

Depois de ouvir 29 ministros, senadores,
deputados, governadores e assessores,
VEJA descobriu que o presidente soube
do mensalão bem mais do que admitiu
oficialmente até agora. Em pelo menos
cinco ocasiões – em Brasília, em Goiás
e até na viagem à China –, o caso
chegou aos ouvidos de Lula


Otávio Cabral

Mauricio Lima/AFP



Nas últimas quatro semanas, VEJA conversou com 29 autoridades para responder à pergunta primordial do escândalo atual: Lula sabia? Lula foi avisado de que deputados aliados receberam dinheiro para aderir à base governista? Lula foi alertado de que aliados vinham embolsando uma mesada de 30.000 reais para votar a favor das propostas do governo? VEJA entrevistou quatro ministros, cinco assessores, seis senadores, doze deputados e dois governadores, sendo que todos eles tiveram contato direto ou indireto com o assunto, e chegou a uma conclusão: o presidente Lula soube mais do que admitiu oficialmente até agora. VEJA encontrou cinco episódios nos quais o presidente estava presente quando se falou do chamado mensalão. O primeiro episódio identificado por VEJA aconteceu em 25 de fevereiro do ano passado, e o portador da notícia da existência do pagamento de mesada foi o deputado Miro Teixeira, na época líder do governo na Câmara. A quinta ocasião foi a única que já veio a público com detalhes. O alerta foi dado pelo deputado Roberto Jefferson, em 23 de março passado, no gabinete de Lula no Planalto.

O levantamento sobre o que chegou aos ouvidos do presidente tem uma evidente lacuna nas diferentes versões. O deputado Roberto Jefferson, desde a sua primeira e explosiva entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, tem dito que levou a denúncia do mensalão ao presidente Lula "em duas conversas". Na semana passada, por meio da assessoria de imprensa, o deputado confirmou a VEJA que a primeira conversa com Lula aconteceu em 5 de janeiro deste ano, no Palácio do Planalto, tendo sido testemunhada apenas pelo ministro do Turismo, Walfrido Mares Guia. O tema oficial era a distribuição de cargos federais para o PTB, mas, a certa altura, Jefferson atalhou dizendo que o mensalão vinha causando problemas ao seu partido. A segunda conversa ocorreu em 23 de março deste ano, na presença de outras seis pessoas, no gabinete presidencial. Procurado por VEJA, o jornalista André Singer, secretário de Imprensa do presidente Lula, desmentiu Jefferson. Em nota, Singer repetiu a versão oficial de que Lula só ouviu falar do mensalão na conversa de 23 de março. Isso quer dizer que, na sua versão, ninguém falou de mensalão em 5 de janeiro.

Joedson Alves/AE
O AMIGO-PROBLEMA
José Dirceu, de volta à planície: o mensalão começou a vazar depois que seu assessor Waldomiro Diniz caiu

É evidente que alguém está faltando com a verdade, mas nem o Palácio do Planalto nem o deputado Roberto Jefferson parecem interessados em entrar em confronto para esclarecer peremptoriamente a confusão. Jefferson mantém sua denúncia inicial de que houve duas conversas e dá detalhes. Diz que, depois de falar do mensalão ao presidente na audiência em janeiro, a bandalheira dos pagamentos sofreu até uma certa redução, mas continuou acontecendo. Ele conta que foi só depois da segunda conversa com o presidente, em 23 de março, que o mensalão foi definitivamente suspenso. O Palácio do Planalto afirma que houve só a conversa de 23 de março, na qual Jefferson fez um "comentário genérico" sobre o mensalão. Lula, então, determinou a dois de seus auxiliares presentes à audiência – os deputados Aldo Rebelo, então ministro da Coordenação Política, e Arlindo Chinaglia, líder do governo na Câmara – que averiguassem o assunto. Os dois descobriram que, em setembro do ano passado, o caso fora investigado pela Corregedoria da Câmara e acabara arquivado por falta de provas. Diante disso, Lula desinteressou-se do tema.

Há outra lacuna relevante. O governador de Goiás, o tucano Marconi Perillo, já confirmou que falou do mensalão ao presidente. Em público, Perillo contou que recebeu Lula no dia 5 de maio de 2004, em Rio Verde, no interior do estado, e reclamou de dois problemas: do pagamento a deputados para que trocassem de partido e do pagamento de mesada para que votassem com o governo. Perillo chegou a ilustrar sua denúncia com dois casos concretos. Um deles foi a deputada tucana Raquel Teixeira, que recebeu a proposta de mudar de partido em troca de luvas de 1 milhão de reais e uma mesada posterior de 30.000 reais, podendo chegar a 50.000 reais. Raquel Teixeira, em depoimento ao Conselho de Ética da Câmara, confirmou tudo e contou que a proposta indecente lhe foi apresentada pelo deputado Sandro Mabel, do PL de Goiás. Sobre o outro caso de sedução pecuniária, Perillo não deu detalhes. VEJA descobriu por quê: é que o deputado assediado aceitou a proposta. Foi Enio Tatico, de Goiás, que trocou o PSC pelo PL. "Mudei de partido porque o líder do PL é de Goiás e é meu amigo. Não recebi proposta." É o que diz Tatico, ao justificar a quarta troca partidária que já fez em dois anos e meio.

José Cruz/ABR
NA TOCA DOS LEÕES
Lula, em reunião com Jefferson e outros aliados: para o presidente, foi uma reunião apenas, mas para o deputado foram dois encontros

Um governador e dois senadores ouviram da boca de Marconi Perillo o relato completo de sua conversa com o presidente, em Rio Verde. Perillo, porém, não quer mais se manifestar sobre o assunto. Explica-se: assim que veio a público confirmar a denúncia de Jefferson, reforçando que o caso do mensalão chegara aos ouvidos de Lula, o governador goiano foi repreendido pela cúpula dos tucanos. Até o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso entrou em cena para obter o silêncio do governador. Os tucanos alegaram que Perillo não deveria jogar mais lenha na fogueira, aprofundando a crise ainda mais, e comprometendo mortalmente a imagem do presidente Lula. Os tucanos, antes como agora, preferem que Lula permaneça no cargo e conclua seu mandato de forma melancólica, cedendo a cadeira para algum tucano eleito nas urnas. Eles querem evitar um desfecho radical para a crise pois isso faria do presidente uma vítima, um mártir. Preferem vê-lo purgar nas urnas os pecados que deixou grassar em seu governo. Cumprindo a determinação da cúpula tucana, Perillo não mandou sequer a carta que prometera enviar ao Conselho de Ética relatando tudo. O que o presidente da República tem a dizer sobre essa conversa com o governador goiano no dia 5 de maio do ano passado? A nota do Planalto não desmente nem confirma. "O presidente não se recorda de nenhum comentário a esse respeito", diz o comunicado oficial.

O mensalão não chegou aos ouvidos de Lula apenas como solução para arrebanhar apoio no Congresso, mas também como problema. No dia 25 de fevereiro do ano passado, duas semanas depois da queda de Waldomiro Diniz, o assessor da Casa Civil flagrado achacando um empresário, Miro Teixeira foi ao Palácio do Planalto reclamar para o presidente do mensalão. Waldomiro Diniz, na condição de braço-direito de José Dirceu, era quem cuidava da relação do governo com o Congresso e, com sua demissão, os credores do mensalão entraram em polvorosa. Miro Teixeira, que havia apenas três semanas assumira a liderança do governo na Câmara, começou a ser procurado pela tropa interessada em saber como seria paga a mesada dali em diante. O deputado ficou estupefato. Não sabia o que era mensalão. Entre os dias 17 e 19 de fevereiro, Miro Teixeira recebeu várias sondagens. Numa delas, na manhã do dia 17, a pressão veio em comitiva. Eram três deputados juntos, querendo saber do futuro financeiro: Valdemar Costa Neto, presidente do PL, Sandro Mabel, líder do PL, e Pedro Henry, do PP.

O deputado Miro Teixeira foi então reclamar para o presidente Lula. Esteve numa reunião da coordenação do governo no dia 25 de fevereiro e, ao fim do encontro, pediu para conversar reservadamente com o presidente. Disse que deixaria o cargo por causa do mensalão. Lula demonstrou surpresa, disse que nunca ouvira falar naquilo e prometeu conversar com o então ministro José Dirceu para apurar a denúncia – mas não voltou a tocar no assunto. No dia 31 de março, Miro voltou ao Palácio do Planalto e, diante do fato de que nada fora feito a respeito do mensalão, pediu para deixar a liderança. Saiu no dia 6 de abril, sendo substituído pelo Professor Luizinho. Até hoje, ninguém entendera por que Miro ficou apenas alguns dias como líder. O deputado jura que deixou o cargo porque discordou do número excessivo de medidas provisórias, o que não deixa de ser curioso porque as MPs eram excessivas antes, durante e depois de sua passagem pela liderança – e, nos dias em que foi líder, o governo manteve sua média de despachar ao Congresso Nacional quase uma MP por semana, sem nenhuma alteração no padrão histórico.

Monica Zarattini/AE
O HOMEM DO DINHEIRO
Delúbio, o ex-tesoureiro do PT: Jefferson avisou a Lula que ele colocaria uma bomba no colo do governo

Miro Teixeira contou o motivo real de sua demissão da liderança de governo para pelo menos cinco interlocutores, que relataram o caso a VEJA. Ele, no entanto, nega que tenha conversado sobre mensalão com o presidente. Nega veementemente. "Jamais falei sobre esse assunto com o presidente da República", diz. A palavra de Miro Teixeira, porém, precisa ser tomada por seu valor de mercado. Em setembro do ano passado, o Jornal do Brasil publicou uma reportagem informando que Miro Teixeira dissera que havia deputados recebendo mesada na Câmara. Assim que a notícia foi impressa, Miro desmentiu-a categoricamente. Agora, depois que Jefferson resolveu contar o que sabe, Miro veio candidamente a público confirmar que a notícia publicada pelo JB em setembro de 2004 era mesmo verdadeira... O Palácio do Planalto, em nota oficial, nega que o mensalão tenha sido o motivo da saída de Miro da liderança e que o pagamento de mesada tenha sido mencionado ao presidente. "Quando o líder Miro Teixeira entregou o cargo, ele se referiu apenas à sua discordância em relação à MP dos inativos", diz a nota.

O problema do pagamento a deputados acompanhou Lula na sua viagem à China, em maio do ano passado. Na noite do dia 25, os deputados da comitiva ofereceram um jantar ao presidente e sua mulher, Marisa. O jantar foi no restaurante Leonardo's, do Hilton Shanghai, um cinco-estrelas de Xangai, cuja diária pode chegar a 1.000 dólares. Havia treze pessoas à mesa, onde foi servida comida ocidental e vinho tinto. Lula sentou-se entre Marisa e o deputado Paulo Rocha, do PT do Pará, para quem, já servida a sobremesa, se virou para fazer uma pergunta: queria saber se Paulo Rocha já ouvira falar de mesada a parlamentares. Rocha disse que não, mas prometeu investigar o assunto. Na mesma noite, sondou deputados que estavam presentes ao jantar sobre o assunto. Três deputados contaram a VEJA o relato que ouviram de Rocha sobre sua conversa com Lula. Dos três, dois estavam à mesa do jantar em Xangai. Rocha nega. "O presidente não me falou nada sobre o mensalão naquele jantar. Era uma mesa com deputados de vários partidos, não havia intimidade para isso", diz. O Palácio do Planalto também nega. "Não houve nenhum diálogo sobre esse assunto", diz nota oficial da Presidência.

Sebastião Moreira/AE
SAÍDA PELOS FUNDOS
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O grau de conhecimento que Lula teve sobre o mensalão é um dado altamente relevante. Se soube do assunto e não tomou providências, Lula pode ser acusado de crime de responsabilidade, previsto nos artigos 84 e 85 da Constituição e, também, na Lei nº 1079, editada em 1950, conhecida como Lei do Impeachment. Pela lei, o presidente, se soube do mensalão, tinha de ter mandado apurar. "Se o presidente teve ciência disso, caracteriza-se uma omissão, que é um caso típico de crime de responsabilidade", afirma o jurista Miguel Reale Júnior, que redigiu a petição que resultou no impeachment de Fernando Collor, em 1992. Um impeachment, no entanto, não é um processo meramente jurídico. É, sobretudo, um julgamento político. Num processo de caráter político, a prova da omissão não basta – é preciso que haja vontade política de punir o presidente. E, no caso de Lula, o cenário não é esse. "Para ser condenado no julgamento político, o presidente tem de estar sem nenhuma base política ou social. Foi o que aconteceu com Collor, mas não é esse o caso de Lula", afirma o jurista Luiz Flávio Gomes, ex-professor de direito da Universidade de São Paulo (USP). A reportagem de VEJA mostra que o presidente Lula soube mais do que admitiu oficialmente até agora. Mostra também que há um interesse explícito no mundo político – e nisso governo e oposição estão de acordo – em evitar um desfecho catastrófico para a crise atual. Para isso é vital não se aprofundar em descobrir o quanto Lula sabia dos desmandos a sua volta, mesmo que não seja crível que ele possa ter estado alheio a tudo. Quando a verdade for revelada, biografias vão ficar mais pobres, mas a história vai se enriquecer.

A SAÍDA DO LÍDER DO GOVERNO

Miro, que deixou a liderança por não aceitar o mensalão

Foto Roberto Stuckert Filho/Ag. O Globo



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