A crise que atinge o governo Lula faz da
política nacional uma fonte inesgotável
de piadas para os humoristas
Sérgio Martins
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"Não sei nada sobre o careca / Nem dólar na cueca / Minha cueca tem menos em real / Que uma mala da Universal" |
Toda crise política é uma mina para os humoristas. Desde que as denúncias do mensalão ganharam o noticiário, com desdobramentos rocambolescos como a prisão de um assessor do PT com dólares na cueca, o país entrou na temporada das piadas. O programa Casseta & Planeta, na Rede Globo, passava por uma fase de marasmo até ser reanimado pelo escândalo. Com o humorista Bussunda na pele do presidente Luís "Inércio" Lula da Silva, eles já fizeram troça da desorientação do governo e das tentativas da cúpula petista de negar suas ligações com o empresário Marcos Valério de Souza. Há duas semanas, exibiram um "depoimento" de sua secretária eletrônica à CPI – ela informava que Valério não estava, mas que se deveria deixar um sinal de 20% depois do bipe. A turma do Pânico, que sempre extraiu seu combustível para o riso das brincadeiras com o mundo das celebridades, também começou a explorar os temas políticos em seu programa na Rede TV!. No último domingo, Sabrina Sato, que faz as vezes de cobaia dos humoristas, surgiu em cena trajando um cuecão – o desafio era entupi-lo de notas.
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Caricatura do petista preso com os dólares: piadas prontas | Bussunda, como o presidente Luís "Inércio" Lula da Silva: o Casseta & Planeta entrevistou até a secretária eletrônica do empresário Marcos Valério |
O humor é uma arma que serve para ferir, mas também para desanuviar tensões. Levada às últimas conseqüências, essa última função pode diminuir a importância de um debate político. No momento, os humoristas brasileiros estão no ataque. E não só na TV. As anedotas estão nas ruas, nas charges da imprensa e na internet. No site do humorista Millôr Fernandes, colunista de VEJA, uma imagem do presidente em queda livre é acompanhada da tirada: "E como dizia Lula, caindo do 10º andar ao passar pelo oitavo: 'Até aqui, tudo bem' ". Os chargistas virtuais também se esbaldam. O mineiro Maurício Quirino, do site www.charges.com.br, veiculou uma animação em que Lula, o ex-ministro José Dirceu e o ex-presidente do PT José Genoíno são caracterizados como integrantes do grupo gay Village People, dos anos 70. Eles requebram ao som de uma musiquinha cuja letra versa: "Não sei nada sobre o careca / Nem dólar na cueca / Minha cueca tem menos em real / Que uma mala da Universal", referência à apreensão de mais de 10 milhões de reais com um deputado do PFL e bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, na semana passada.
"Oi, companheiros, eu sou o Men$alinho" Uma das muitas charges sobre o escândalo petista que circulam em correntes de e-mail pela internet: o brasileiro perde a confiança nos políticos, mas não o humor |
No Brasil do mensalão, como já ocorreu em vários tempos e lugares, a sátira política tem sido um canal que reverbera a indignação popular com os desmandos dos homens públicos. "Ridendo castigat moris", já dizia a máxima romana. Ou seja: rindo, corrigimos os costumes. É uma arte que remonta à Grécia Antiga, quando Aristófanes bombardeava as instituições de Atenas em suas peças. A sátira política teve expoentes como o irlandês Jonathan Swift (1667-1745), que afirmava escrever para "envergonhar o mundo, não para diverti-lo". Em seu célebre panfleto Uma Modesta Proposta, Swift sugeria que se transformasse as crianças pobres em comida para mitigar a fome em seu país. Depois dele, a literatura teve satiristas do porte de Voltaire, que fustigava o clero da França pré-Revolução de 1789, e o jornalista H.L. Mencken, que desancou juristas, religiosos e políticos nos Estados Unidos do século XX. Escreveu Mencken: "Se um político julgasse haver canibais entre seus eleitores, prometeria missionários para o jantar de domingo".
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Sabrina Sato, a cobaia da turma do Pânico: o desafio era entupir o cuecão da moça com a dinheirama |
O exercício do humor é um termômetro do grau de liberdade de uma sociedade. A história do Brasil exemplifica isso. O historiador Elias Thomé Saliba observa que, no Estado Novo, o ditador Getúlio Vargas estimulava as charges a seu respeito, pois elas o tornavam simpático aos olhos do povo ("É por isso que não faço mais charges de personagens específicos: eles podem gostar", diz o cartunista Angeli). Era vedado, porém, abordar os problemas sociais. "A gente era proibido até de comentar a falta de água num bairro", conta o veterano Max Nunes, redator do Programa do Jô. Na ditadura militar, a sátira passou por um período de trevas. Só no governo de João Baptista Figueiredo, o último dos generais-presidentes, a censura abrandou. O humorístico Planeta dos Homens, exibido então pela Globo, foi o primeiro a furar o bloqueio, com uma piada que hoje soa ingênua (veja quadro).
Com a redemocratização, tornou-se possível recontar cada crise política por meio do humor. Sem peias, os humoristas passaram a exercer seu papel numa sociedade livre: pôr o dedo nas feridas da nação. Quatro anos atrás, o Casseta & Planeta provocou protestos no Congresso Nacional ao exibir um esquete em que deputados eram obrigados a se vacinar contra a febre "afurtosa" e outro no qual uma prostituta se indignava quando lhe perguntavam se ela era deputada. O humorista não tem mesmo de prestar contas a ninguém além de sua consciência. Até recentemente, era preocupante notar que uma parcela dos chargistas havia adotado uma postura complacente em relação ao governo Lula. É o caso de Chico Caruso, que satirizou como ninguém o impeachment de Fernando Collor e já nem parecia o mesmo. Só depois do escândalo do mensalão ele recobrou algo de seu espírito crítico. A crise faz bem para o riso.
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Sátiras políticas que marcaram
a história recente do Brasil
• Governo Figueiredo
Fernando Pimentel | Um sujeito pede um uísque no bar e o garçom pergunta: "O senhor quer um Presidente ou um Passport?" Planeta dos Homens: a primeira piada política liberada pela censura para a TV aludia, por meio das duas marcas de bebida, ao dilema de se conformar com a ditadura ou sair do país |
Vera Sayão | "Eu quero que pobre se exploda!" Bordão do deputado Justo Veríssimo, personagem de Chico Anysio: crítica à classe política |
• Governo Sarney
Ique |
Charge do cartunista Ique: sátira à construção da Ferrovia Norte–Sul, projeto do presidente |
"Aqui tudo acaba em samba."
Bordão do contínuo gay: o personagem de Jô Soares trabalhava no Congresso Nacional e ironizava o fato de os escândalos terminarem em pizza
• Impeachment de Collor
Chico Caruso | Charge de Chico Caruso: o cartunista se destacou ao cobrir os desmandos da era Collor, mas amansou no governo Lula |
"Depoiminto: depoimento feito à CPI que não convence ninguém; Dindamarca: reino imaginário onde estranhos fenômenos acontecem e existe sempre um odor de impureza no ar."
Glossário da CPI, de Jô Soares, publicado à época por VEJA: a indignação dos brasileiros extravasada pelo humor
Chico Caruso | "Autópsia" do cadáver político de Collor, também por Caruso: é possível recontar a crise por meio do humor do período |
• Governo Itamar
"Hoje vai ter tráfico de Lexotan na CPI! Primeiro a ser cassado é aquele de maleta e cabelo tingido. Qual deles? Aliás, qual de todos? Rarará!"
Tirada do colunista José Simão, da Folha de S.Paulo: o alvo eram os deputados envolvidos no escândalo dos anões do Orçamento
Oscar Cabral | Esquete do Casseta & Planeta que satiriza Itamar Franco, nos dias do escândalo dos anões do Orçamento: ele virou "Devagar" Franco |
• Governo FHC
Ana Paula Paiva | O humorista Hubert, encarnando sua caricatura de FHC: apelidos do presidente variavam de "Viajando" Henrique Cardoso a "Divagando" Henrique Cardoso |
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