Folha de S Paulo
Uma noite dessas, achei que enlouquecia calmamente. Já me aconteceu outras vezes, no exílio, mas tinha um amigo com quem conversava, e ele sempre dizia: "Você está lúcido". O amigo Francisco Nélson morreu quando se dedicava a editar uma enciclopédia.
Felizmente, na manhã seguinte à minha sensação, encontrei outras pessoas que me disseram, nos corredores do Congresso, que sentiam o mesmo. Uma delas gritou para mim: "Salvador Dalí deve estar se mexendo no túmulo".
Francisco Nélson sabia como é fácil enlouquecer. As coisas, por exemplo, costumam conspirar nesse sentido. Chaves e canetas desaparecem com regularidade. Às vezes, associam-se aos óculos e transformam as saídas de casa num verdadeiro inferno. Se pelo menos os óculos reaparecessem em primeiro lugar... mas são implacáveis em seu ardil conspiratório.
O problema fica mais complicado quando entram em cena as pessoas, sobretudo no auge de uma crise político-moral como a que o Brasil atravessa hoje. Liga-se a televisão e lá está um homem totalmente calvo, dizendo que é apenas meio careca. E um senador do PT perguntando se o empresário "sospechoso" tem negócios no exterior, no Afeganistão, por exemplo.
Os neurônios resistiram a essas escaramuças até que um verdadeiro homem-bomba se explodiu numa noite de sábado, arruinando o que restava de nossas pobres conexões mentais. Cem mil dólares dentro da cueca e mais uma pequena fortuna dentro de uma mala com a inscrição "no stress".
Embora seja agradecido pelo detalhe do "no stress", confesso que capitulei no fim de semana e pensei em ler alguma coisa bem distante, como o intercâmbio cotidiano dos maronitas e muçulmanos no Líbano de hoje. Durou pouco minha fuga: sete malas, um Citation, um pastor deputado, seguranças armados, todos descobertos no aeroporto de Brasília. Dentro das malas, R$ 10 milhões.
Durante o fim de semana, o homem da cueca tentava nos convencer de que vendera legumes em São Paulo. Ele trouxe a mala "no stress" cheia de jerimum e macaxeira e recebeu em dólares, revelando o esplendor do agronegócio brasileiro.
Os acontecimentos nos aconselham a uma dupla tática. Livros sérios e profundos serão escritos sobre o período. Acredito que terão uma boa descrição do grupo de bancos envolvidos, do funcionamento das estatais, das inúmeras maneiras de produzir dinheiro com a omissão do Estado (desmatamento, multas do INSS) e também dos personagens políticos que realizaram uma longa trajetória pela história contemporânea.
Vendo o filme "O Anti-Herói Americano", percebi que esse período merecia também um grande almanaque de história em quadrinhos. Se pudermos selecionar os fatos, canalizar para análise os números e as teses, estaremos trabalhando numa dimensão, mas os personagens e episódios que se sucedem ficariam muito melhor em desenhos.
Já é possível começar a pesquisa, mas temos de estar com os olhos abertos para os novos personagens. O homem da cueca apareceu numa sexta à tarde, nos pegou desguarnecidos e transformou todas as novidades das revistas semanais em velhas notícias.
A dupla atividade permite, de um lado, analisar a queda do Muro de Berlim tropical, com toda a gravidade que o atraso histórico representa para o país; de outro, permite integrar na história em quadrinhos os personagens e episódios que estariam à vontade nesse formato. Teríamos Delúbio Soares para a análise histórica e Delúbio Bandeira no desenho, para falar apenas de um. Sem contar as fusões, como a de José Simão: Heloisa Helena, Denise Frossard e Ideli Salvati. Uma boa idéia.
A história em quadrinhos poderia fazer alguma justiça aos arapongas que se tornaram pássaros, filmando e gravando para empresários, para si próprios, para a Abin, para a Abin do B, enfim, a confusão que armam para nos confundir.
Não sei se Francisco Nélson aprovaria essa cisão entre o sério e o cômico, se realmente podemos destacar um espaço onde podemos falar da crise de forma circunspecta e outro em que tentamos rir para não enlouquecer. As coisas são misturadas. Recebi mensagem de uma surfista dizendo que entrou um swell e ela fez a mochila para viajar, porque estava esperando as melhores esquerdas do mundo. Se fossem as melhores direitas, estaria partindo também.
Fantasma do século 20, vejo-me de novo com os fragmentos do muro que os camelôs vendiam nas ruas de Berlim. Depois de certo tempo, eles começaram a vender pedras falsas, e creio que até hoje elas rolam pelo mundo, como se fossem um testemunho mineral do grande momento histórico. Falsas pedras rolando, salvadores da pátria, arapongas, estrategistas, bandidos de Cristo, dólares na cueca, outrora reservada para o batom e a lembrança da boca.
Os chineses chamam a isso de tempos interessantes. Fomos condenados a eles, Francisco Nélson, e espero emergir com duas versões: uma textual, outra em quadrinhos. Estou lúcido?
Entrevista:O Estado inteligente
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