Em meio a saques, malas e carros-fortes,
tudo parece casual. Mas nada é por acaso
no laboratório do PT
Alexandre Oltramari
A máquina de fazer dinheiro do doutor Valério pode parecer uma geringonça montada com peças coletadas ao acaso: pega-se um empréstimo no BMG, descobre-se uma agência discreta do Rural e junta-se um projeto de poder ambicioso como o do PT e um tesoureiro amador como Delúbio Soares – e estamos conversados. Nada, no entanto, é casual no esquema. Está cada vez mais evidente que Marcos Valério não foi uma invenção do PT de Delúbio. Com suas agências de publicidade, que fazem publicidade e outras coisas muito menos públicas, Valério passou a operar para os petistas depois de já ter se testado no ramo trabalhando para políticos de outros partidos, como o PSDB e o PFL. Mas foi com o PT que Valério ocupou posição de destaque na montagem de um esquema que começava com os negócios em estatais como os Correios ou a Eletronorte, desembocava em suas agências de publicidade, passava pelo Rural e pelo BMG e terminava no mensalão, para os aliados, e no mesadão, para os próprios petistas. Tudo clandestinamente.
A escolha do BMG e do Rural para servirem de escala e biombo foi uma decisão meticulosa. No início de 2003, quando começaram a repassar dinheiro ao PT por meio das empresas de Marcos Valério, os dois bancos tinham interesses milionários no governo. O BMG era um banco pequeno, que nem sequer aparecia na lista das cinqüenta maiores instituições bancárias do país. Controlado pelo clã Pentagna Guimarães, uma das mais tradicionais famílias mineiras, o BMG pretendia decolar emprestando dinheiro a aposentados e pensionistas do INSS com desconto direto na folha de pagamento, o chamado crédito consignado. Seu projeto, porém, esbarrava na lei brasileira, que não permitia esse tipo de operação. Já o Rural era um banco acuado. Alvo de uma CPI comandada pelo PT, a CPI do Banestado, o Rural caminhava no fio da navalha. A CPI detectara operações ilegais do Rural de 700 milhões de dólares feitas por meio de uma offshore, o Trade Link Bank (veja reportagem). Além da CPI, o banco também era investigado pela Polícia Federal, pelo Banco Central e pela Receita Federal.
Com o Rural acuado e o BMG de olho no dinheiro dos velhinhos do INSS, o PT vislumbrou a possibilidade de arrancar dinheiro fácil em Minas Gerais. Estava certíssimo. Contabilizando os dois empréstimos ao PT e os outros seis concedidos às empresas de Valério, Rural e BMG entregaram ao PT exatamente 74,7 milhões de reais entre 2003 e 2004. Entregaram, porque esse valor nunca foi pago – e ninguém jamais se mexeu para cobrá-lo, postura raríssima em instituições bancárias. No caso do BMG, que entregou a Valério 41,1 milhões de reais, chama atenção a fragilidade das garantias. O banco chegou a aceitar, como garantia, o contrato de uma das empresas de Valério com os Correios. O contrato era vistoso, de 29 milhões de reais, mas o BMG nem se preocupou com o fato de que a menor parte desse contrato, apenas 3,6 milhões de reais, pertencia à empresa de Valério. O grosso do dinheiro era destinado a outras empresas e fornecedores. Onde se viu um banco aceitar tamanha ficção como se fosse "garantia real"?
Roberto Stuckert Filho/Ag. O Globo |
O SILÊNCIO DE MENTOR José Mentor, cujo relatório da CPI do Banestado não trouxe uma linha sobre o Rural. Por que será? |
Há muitos indícios de que os contratos eram apenas simulações para justificar as transferências de dinheiro ao PT. Dos oito empréstimos que Delúbio e Valério arrancaram dos dois bancos, apenas um foi pago. É um empréstimo de 12 milhões de reais, tomado pela agência SMPB junto ao BMG em 25 de fevereiro de 2003. A dívida foi quitada um ano depois de contraída, por quase 15 milhões de reais. Mas mesmo esse pagamento soa como farsa. A quitação só foi possível porque a Graffiti, outra empresa de Valério, recebeu, no mesmo dia, outro empréstimo do BMG, no valor de quase 16 milhões de reais. Eis como funciona a ciranda financeira, trocando em miúdos: Valério pega dinheiro no BMG, fica um tempo sem pagar, o BMG libera mais dinheiro, e ele paga a conta inicial cravando já uma nova conta. Ou seja: dos oito empréstimos feitos pela dupla Valério e Delúbio, a única dívida que chegou a ser saldada teve como lastro o dinheiro do próprio banco credor...
O Banco Rural, que concedeu três empréstimos num total de 31,2 milhões de reais, não chegou a receber nada. Nem o principal nem os juros. A dívida original, se fossem levados em conta os mecanismos de mercado das operações verdadeiras, estaria hoje cotada em 58,8 milhões de reais. "É muito dinheiro para não cobrar na Justiça, especialmente para um banco de médio porte, como o Rural. Tudo indica que houve um acordo", diz Miguel de Oliveira, presidente da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac). Por que o Rural e o BMG, então, toparam entrar num esquema em que dão empréstimos e nunca recebem um tostão de pagamento? Examinando-se o caso de cada um, descobre-se que pode ter havido vantagens extraordinárias – maiores até do que a quitação de uma dívida.
No início de 2003, bem no começo do governo Lula, aconteceu uma reunião discretíssima em Brasília, na qual Valério e Delúbio apresentaram José Dirceu, então ministro da Casa Civil, ao presidente do BMG, Ricardo Pentagna Guimarães. Ali, acertou-se que o governo editaria uma medida provisória permitindo o tal "crédito consignado" pelo qual aposentados e pensionistas do INSS poderiam tomar empréstimo com desconto em folha. Em setembro de 2003, o governo cumpriu a promessa. Editou a MP 130, e o BMG foi o primeiro banco autorizado a operar a nova modalidade de empréstimo. Durante três preciosos meses, o BMG reinou sozinho no mercado. Só depois de três meses é que outros bancos conseguiram credenciar-se no INSS para fazer o mesmo. Já era tarde demais. O BMG já era líder disparado no mercado. Graças ao crédito consignado aos velhinhos do INSS, que hoje representa 90% de seus negócios, o BMG virou fenômeno. Seu lucro líquido, que em 2002 foi de 85 milhões de reais, saltou para 275 milhões de reais em 2004 – um espantoso crescimento de 223%.
Robson Fernandes/AE |
COISA FABULOSA Uma agência do INSS: o crédito consignado caiu como uma bênção para o BMG, cujo lucro cresceu mais de 200% em dois anos |
A relação com o PT também teve dividendos inestimáveis para o Rural. O deputado José Mentor, do PT paulista, que trabalhava como relator da CPI do Banestado, preparou um documento final em que simplesmente não há menção ao Rural. Mentor excluiu o banco da lista de indiciados. Mentor, que chegou a viajar a Belo Horizonte para tomar os depoimentos dos executivos do Rural, apresentou duas versões de suas conclusões. A primeira, concluída em dezembro de 2004, tinha oito capítulos apenas no índice. No corpo do documento, havia capítulos a menos. Um assessor legislativo que trabalhou na CPI disse a VEJA que Mentor mandou retirar 100 páginas do relatório, justamente as que incriminavam o Rural. "O relatório é meu. Só entra o que eu quero", diz Mentor. Na segunda versão de seu relatório, apresentada em fevereiro deste ano, o indiscreto descompasso entre o índice e o corpo do documento foi corrigido – e o Rural safou-se de qualquer problema na CPI.
De acordo com Fernanda Karina Somaggio, a ex-secretária de Valério, Mentor e Valério se encontraram várias vezes. A agenda de Fernanda registra cinco encontros. Num deles, está anotado: "J. Mentor – transferir a reunião de amanhã para segunda e ver quando é o assunto Rural". Valério já admitiu ser lobista do Rural junto ao governo federal. Na semana passada, descobriu-se que Valério, o lobista, pagou 120 000 reais ao escritório de advocacia do deputado, o mentor do fiasco que salvou a pele do Rural na CPI. "Prestei um serviço a um advogado de Minas Gerais. Não sabia que o cheque era do Marcos Valério", diz.
A mesma documentação que Mentor desprezou, por inútil, motivou a abertura de um inquérito pela Polícia Federal, em 2002. O juiz federal Marcelo Cardozo da Silva, da 2ª Vara Criminal de Foz do Iguaçu, enviou a movimentação da offshore do Rural à Receita Federal e ao Banco Central. O juiz exigia que se tomassem providências diante do que chamou de "fundados elementos que apontam para a prática de crimes de sonegação fiscal e de crimes contra o sistema financeiro". O inquérito da PF foi então aberto. Mas – esse Rural é danado de sortudo – nunca andou. Há um ano, diante da letargia policial, a procuradora da República Paula Conti Tha, de Curitiba, pediu à PF que interrogasse a cúpula do Rural sobre a movimentação não declarada de 700 milhões de dólares nos Estados Unidos. Até agora, porém, a PF não cumpriu o pedido. Também não se tem notícia de nenhuma autuação da Receita Federal contra o Rural. No Banco Central, dois processos administrativos, nos quais diretores do banco eram acusados de gestão fraudulenta, foram arquivados graças a pareceres do procurador da Fazenda Glênio Guedes – aquele mesmo procurador que recebeu 902.000 reais de Valério dias antes de assinar um documento inocentando os dirigentes do Rural.
Rafael Neddermeyer/AE |
COM DINHEIRO ENTRE AS MÃOS O ex-diretor do BB Henrique Pizzolato: contrato com empresa de Valério e dinheiro por baixo do pano |
Dos bancos mineiros, o esquema clandestino do PT tem sólidas ramificações na máquina pública, conexão que não pára de produzir vítimas fatais. Na semana passada, o ex-secretário-geral do PT Silvio Pereira enviou uma carta à direção do partido pedindo sua desfiliação. Silvinho, como era chamado pelos agora ex-companheiros, é aquele que Dirceu disse que uma CPI "minimamente séria" pegaria. Pegou. Uma reportagem do Jornal Nacional, da Rede Globo, revelou que Pereira ganhou um jipão de mais de 70.000 reais de presente da empresa baiana GDK, que venceu cinco licitações para prestar serviço à Petrobras. Outra vítima estrelada que também tombou por engordar o próprio patrimônio é o ex-diretor de marketing do Banco do Brasil Henrique Pizzolato. Pizzolato contratou a agência DNA, de Marcos Valério, para prestar serviços de propaganda ao BB em setembro de 2003. E embolsou 326.000 reais, em dinheiro vivo, sacados das contas de Valério no Rural. E assim, em meio a pacotes de dinheiro e carrões de luxo, o PT vai produzindo seu crepúsculo moral.
Os vários caixas de Valério
No mundo da contabilidade empresarial, não há caixa dois sem a existência do caixa um – normalmente ofuscado em tempos de escândalo. Ainda que um empresário queira ocultar ou desviar receitas, ele precisa manter parte do negócio bem limpinha para prestar contas à Receita Federal e escamotear as irregularidades. Os negócios de Marcos Valério, o pagador do mensalão, não são exceção. O empresário mineiro desviou para políticos a maior parcela do dinheiro que arrecadou das empresas públicas para as quais, em tese, deveria prestar serviços publicitários. O que manteve suas atividades ilícitas fora do alvo das autoridades foram os serviços que realmente executou.
É, por exemplo, o caso do trabalho feito por Valério para o Bradesco. Em 2002, o Bradesco venceu a licitação para montar um banco dentro das agências dos Correios – o Banco Postal, negócio até hoje invejado pela concorrência. Segundo as regras da licitação, quem ganhasse o direito de explorar o Postal seria obrigado a pagar metade da conta de publicidade e usar apenas a agência escolhida pelos Correios – sem licitação para esse serviço específico, diga-se de passagem. Não passa sem chamar atenção o fato de o governo ter imposto ao Bradesco justamente uma das agências de Valério, a SMPB. Nos últimos três anos, o Bradesco depositou 10 milhões de reais em uma das contas dessa agência. "Não temos escolha. Somos obrigados a aceitar a SMPB", disse a VEJA um porta-voz do Bradesco. O banco garante ter conferido uma a uma as notas fiscais referentes aos serviços prestados antes de autorizar os pagamentos.
Do mesmo cuidado se cercou a Ford, que, neste ano, contratou em três ocasiões a empresa especializada em eventos MultiAction, também de Valério, para montar estandes em feiras agropecuárias nos estados de Mato Grosso do Sul, Paraná e São Paulo. A montadora Fiat também costuma contratar a MultiAction para organizar o lançamento de alguns de seus automóveis. O último evento aconteceu em março deste ano, em Curitiba, onde a montadora lançou seu novo motor 1.4 Flex. Como se vê, não será fácil para as autoridades separar o joio do trigo nas contas de Marcos Valério.
|
|
Claudio Cunha/1º Plano | |
ESTÁ TUDO NO PAPEL Guilherme Rabello, diretor do Rural, é autorizado a mexer com o dinheiro do Trade Link, como mostra o documento ao lado |
Há um mês, quando o mensalão era só uma suspeita, uma empresa com nome estrangeiro surgiu em meio ao escândalo – o Trade Link Bank. Rui Vicentini, ex-tesoureiro do PPS, revelou ao jornal O Estado de S. Paulo ter ouvido do doleiro Antonio Claramunt, conhecido como Toninho da Barcelona, uma confissão séria. O doleiro dissera que operava um esquema clandestino pelo qual o PT mandava e recebia dinheiro do exterior de forma ilegal. "Levantei a operação. Marquei o nome Trade Link Bank. O dinheiro ia para Miami e voltava pela conta do pessoal no Banco Rural", disse o tesoureiro do PPS, partido que, até seis meses atrás, fazia parte da base de apoio ao governo petista. Desde então, o Rural tem se esforçado para distanciar-se o máximo possível do Trade Link Bank. Numa nota oficial, publicada nos principais jornais do país há três semanas, o banco chegou a afirmar que "não há participação societária do Rural no Trade Link Bank". Não há mesmo, mas essa é a parte pública. O pedaço subterrâneo mostra que o Trade Link tem ligações irrefutáveis com o Rural e funcionava, na prática, como um ninho de doleiros.
Criado nas Ilhas Cayman, paraíso fiscal do Caribe, o Trade Link instalou sua base de operações nos Estados Unidos, mas chegou a ter atividades no Brasil. No dia 19 de abril de 1998, por exemplo, a diretoria do Trade Link fez uma reunião, com ata e tudo, em Belo Horizonte. VEJA teve acesso à ata. Nela, lê-se que a reunião da cúpula do Trade Link foi realizada no seguinte endereço: Rua Rio de Janeiro, 927, Belo Horizonte. É um edifício que pertence ao Rural e abriga a sede do banco, na capital mineira. Quem assina a ata é o senhor Sabino Correa Rabello, o fundador do Rural, falecido no início deste ano.
Até poucos meses atrás, a sede do Trade Link nos Estados Unidos ficava no mesmo endereço da subsidiária americana do Rural, a Rural Securities. Ambas estavam instaladas no mesmo andar de um luxuoso edifício comercial, o Wachovia Financial Center, na região central de Miami, na Flórida. A placa do Trade Link, que ficava lado a lado com a que identificava a Rural Securities, foi arrancada há quatro meses. Mas isso está longe de apagar as digitais do Rural. VEJA também teve acesso ao documento que serve como cartão de assinaturas da pessoa autorizada a movimentar o dinheiro da empresa. No cartão está a assinatura de Guilherme Rocha Rabello, diretor do Rural em Belo Horizonte e primo da atual presidente do banco, Kátia Rabello.
Uma das contas bancárias do Trade Link que o diretor do Rural podia movimentar ficava na tristemente famosa agência do Banestado de Nova York. Por essa conta passaram 700 milhões de dólares em menos de dois anos. Em 2002, quando a Polícia Federal começou a investigar a farra das remessas ilegais para o Banestado de Nova York, descobriu-se que o Trade Link usava suas contas bancárias para hospedar dinheiro que saía ilegalmente do Brasil. Era um ninho dos doleiros. O Trade Link tinha contas clandestinas no Standard Chartered, no UBS e no Bank of America, além do Banestado. Só da conta no Banestado, franqueada aos doleiros, saíram quase 60 milhões de dólares num único dia, e o destino era uma conta do Rural International Bank. Outra empresa do grupo, a IFE Rural, subsidiária do grupo no Uruguai, recebeu 11 milhões de dólares numa operação. Tudo ali era vultoso, oculto e sempre enlaçado ao Rural de Belo Horizonte.
Em depoimento sigiloso, transcrito em quatro páginas, o doleiro Alberto Youssef, um dos maiores do país, detalhou ao juiz Sérgio Fernando Moro, da 2ª Vara Federal de Curitiba, como funcionava o esquema do Rural para mandar dinheiro ilegalmente para fora do país. Ele disse ter criado contas em nome de laranjas, contou que as operações eram do conhecimento de executivos do Rural e deu até o nome de seus interlocutores em Belo Horizonte: José Augusto Dumont, vice-presidente falecido em abril de 2004, e José Roberto Salgado, o atual vice-presidente da instituição. "Várias operações de clientes do Rural que precisavam colocar dinheiro lá fora eram feitas comigo", confessou Youssef. O Banco Rural nega.
O doleiro Toninho da Barcelona, que teria operado o esquema do PT no exterior, é acusado de movimentar ilegalmente 190 milhões de dólares nos Estados Unidos. Ele foi preso durante a Operação Farol da Colina, realizada em agosto do ano passado, às vésperas da eleição municipal. Nessa operação, foram presos 62 doleiros, quase todos clientes do Trade Link. Outra coincidência: num de seus depoimentos na Câmara, Roberto Jefferson contou que o PT ficou de lhe dar 20 milhões de reais, mas entregou apenas 4 milhões – e Jefferson foi cobrar o resto. O então ministro José Dirceu explicou que o PT estava com o caixa no vermelho com as seguintes palavras: "Roberto, a Polícia Federal é meio tucana. Botou em cana 62 doleiros agora, véspera de eleição. A turma que ajuda não está podendo internar dinheiro no Brasil".
Nenhum comentário:
Postar um comentário