no mínimo
14.07.2005 | Ia modorrenta a sessão da CPI dos Correios, com deputados e senadores já não tendo muito que perguntar ao ex-diretor de Administração Antonio Osório Batista. Além do mais, era hora do almoço, havia cadeiras vagas no plenário e os registros provavelmente indicavam baixa audiência da TV Senado. Mesmo assim, nesta terça-feira, 12, deu-se ali uma cena marcante e definidora para o momento que o país vive, com a crise política, moral e policial que ronda o PT e respinga fortemente no governo.
Lá pelas tantas, Jamil Murad (PC do B-SP), um dos 16 deputados suplentes da comissão, desentendendo-se como sempre ocorre com plurais, regências e concordâncias, começou a desfiar uma longa catilinária sobre a ameaça de "crise institucional", classificando as acusações que jorram de todos os lados envolvendo o PT como parte de um "golpe" das "elites" supostamente em andamento contra o presidente Lula. (Que "elites"? – seria o caso de perguntar. Os banqueiros, por exemplo, satisfeitíssimos e recheados de lucros graças à política de juros do governo?)
Depois de muita insistência, a deputada e juíza de Direito aposentada Denise Frossard (PPS-RJ) consegue um aparte e simplifica as coisas. Não há crise institucional coisa alguma, diz a magistrada, tornada célebre por terminar em 1993 com a impunidade dos chefões da máfia do jogo do bicho no Rio de Janeiro, colocando na cadeia 14 grãos-senhores da contravenção e do crime. As instituições estão funcionando normalmente, lembra a deputada: a Justiça trabalha, o Ministério Público faz sua parte, a Polícia Federal também, deputados e senadores atuam intensamente na CPI. E aí, ruborizada pela veemência, ela conclui, acentuando a última palavra:
– Mas que golpe? Que crise institucional? Estamos aqui tratando de ladroagem!
Pois então. O conto-do-vigário do "golpe" e da "crise institucional" inventado pelos mesmos figurões do PT que, mal iniciado o segundo e legítimo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (1999-2001), bradavam a palavra de ordem – esta sim golpista – "Fora, FHC", é exatamente isso: uma cortina de fumaça que procura tirar o foco do real problema com que estamos nos defrontando. Há sinais evidentes e clamorosos, e cada dia mais numerosos e variados, de grossa roubalheira que compromete o partido e que pode, sim, como provavelmente sucederá, bater em altos escalões do governo.
Enquanto alguns de seus aliados – certos deputados e senadores e determinados dirigentes sindicais, por exemplo – continuam tentando tocar a corneta mentirosa do "golpe", o governo vai tirando da cartola os coelhos mirrados que consegue.
Primeiro, essa "reforma ministerial" chinfrim, constrangedora, em que Lula anda três passos para a frente e três para trás, depois de biológicos, intermináveis nove meses de negociações e idas-e-vindas: trocam-se ministros insossos e inexpressivos por outros de igual calibre, rebaixam-se e fundem-se secretarias, incluem-se "técnicos" para parecer que diminuiu o grau de politicagem e se faz um carnaval para conseguir, do fisiológico PMDB, o mesmo e incerto apoio parlamentar antes existente.
Enquanto isso, promove-se um súbito interesse pela proposta do deputado Delfim Netto (PP-SP) de "déficit nominal zero" – um ajuste que possibilitaria ao caixa do governo pagar todas as suas despesas, inclusive os juros, sem "rolar" via novos endividamentos a dívida pública interna –, como se um governo caindo pelas tabelas como o de Lula tivesse a remota possibilidade de negociar e implantar as duríssimas mudanças que a medida, além de tudo ultra-controvertida, iria requerer.
Como o atual lamaçal tem a ver com dinheiro para partidos e campanhas eleitorais, acrescenta-se ao bolo o aceno em direção a uma "reforma política" supostamente saneadora em torno de cujos pontos mais relevantes não existe o menor consenso e a respeito da qual, como foi registrado neste espaço recentemente, o governo já cedeu antes de o jogo começar: omitiu-se totalmente diante da derrubada de medida moralizadora aprovada pelo Congresso em 1995 e que iria entrar em vigor no ano que vem – a chamada "cláusula de barreira".
O mecanismo, adotado por várias grandes democracias, impediria a eleição de deputados federais e o acesso irrestrito aos chamados "horários eleitorais gratuitos" no rádio e na TV, às verbas do Fundo Partidário e a outras vantagens a partidos que não obtivessem, nas eleições para a Câmara, um total mínimo de 5% dos votos e pelo menos 2% dos votos de nove Estados. Derrubada a exigência, continuarão a existir partidos sem representação social mínima e sem votos, mas com preciosos minutos de horário eleitoral a serem alugados, vendidos ou mercadejados de outra forma, por preço a combinar.
A espantosa manutenção da popularidade presidencial revelada pela última pesquisa CNT/Sensus, apesar da metralha de acusações que desabam sobre seu partido e ameaçam seu governo, acabou fornecendo um novo alento ao Palácio do Planalto. Ela não muda em nada, porém, a natureza e a gravidade da crise. Poderá amenizar os efeitos da declaração do presidente, feita na reunião ministerial que antecedeu sua viagem à França, de que ainda "não sabe" se será candidato em 2006. E talvez tenha o condão de sepultar, de vez, as tratativas discretas que vinham ocorrendo entre a oposição tucana, devidamente acompanhadas pelo PFL, de um "acordão": em troca da "blindagem" da figura do presidente até o final de seu mandato, e do apoio a certas medidas, seria revogado o instituto da reeleição – inventado pelos próprios tucanos durante o primeiro mandato de FHC – e não haveria Lula na cédula no ano que vem.
O "acordão" era intrinsecamente imoral. Em primeiro lugar, porque não se pode negociar a blindagem de ninguém, inclusive a do presidente, se há suspeitas de seriíssimas irregularidades e investigações em curso. Lula não é santo, não está acima do bem e do mal, e sua biografia, embora extraordinária, não lhe garante uma automática isenção de culpa por antecipação em relação a nada. Em segundo lugar, uma das razões invocadas para o conchavo seria o medo que desperta – começando em gente do governo, diga-se – a hipótese de o vice-presidente José Alencar assumir a Presidência, por suas conhecidas diferenças com a política econômica do ministro Antonio Palocci, especialmente no terreno dos juros. Temer-se-ia que Alencar, dando-se a ainda quase impensável circunstância de um afastamento de Lula, uma vez no governo pudesse fazer "loucuras".
Essa premissa é tenebrosa. Significaria não apenas tratorar a experiência, o bom senso e o equilíbrio de um político e empresário laborioso e vencedor, como é o caso de Alencar, como representaria uma completa desmoralização das instituições. Quer dizer que vice-presidente é brincadeira, não é cargo para valer? Quer dizer que a eleição de Alencar, na chapa de Lula em 2002, foi só para constar? Estaríamos regredindo a parâmetros de 1961, quando o Congresso, sob os cutucões das baionetas dos ministros militares, inventou um parlamentarismo de opereta destinado a retirar poderes do à época vice João Goulart para, só então, colocá-lo na cadeira presidencial.
O aparente abandono do "acordão" depois da divulgação dos números da CNT/Sensus e após Lula, na reunião ministerial, ter fuzilado a conversalhada em andamento como sendo uma "mutreta" para mudar as regras do jogo que ele não aceitaria, talvez seja a única boa notícia política dos últimos dias. Afastada a hipótese do que, aí sim, constituiria um problema institucional – "blindar" um presidente por temor de que o vice, cumprindo a Constituição, assuma –, voltamos à rotina do que muito bem definiu a juíza-deputada Frossard: investigar a ladroagem.
Entrevista:O Estado inteligente
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