Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, julho 07, 2005

Projeções da crise BORIS FAUSTO

folha de s paulo

Em meio a uma crise cuja duração e efeitos hoje são ainda impossíveis de medir, não é sem propósito indagar quais os riscos e eventuais oportunidades que uma situação desse tipo apresenta. Entre os riscos, começo com o desencanto da população, cujos sintomas são visíveis.
Desde a restauração da democracia, manteve-se no país um sentimento de esperança de que escândalos dariam lugar a correções de rumo significativas, possibilitadas pelas virtudes do regime democrático. Nesse sentido, apesar dos pesares, o Brasil representou nos últimos tempos, no contexto da América Latina, um exemplo contraposto a países como a Bolívia ou a Venezuela, nos quais se cavou um fosso entre as grandes massas e os setores letrados, com conseqüências danosas que vão da instabilidade, no primeiro caso, à erosão da democracia, no outro.


Tudo isso conduz a uma descrença nos partidos e nas instituições. Em 25 anos de democracia, não vimos quadro tão grave


Ao mesmo tempo, o Brasil está longe de se comparar, por exemplo, ao Chile, onde a maturidade da "Concertación" -a aliança entre a democracia cristã e os socialistas-, assim como a conversão da direita aos princípios democráticos, assegurou a vigência do regime democrático, associado aos êxitos de uma política econômica responsável.
No caso brasileiro, entre os fatores que concorreram para a estabilidade democrática, encontra-se a formação do PT, em particular depois que o partido abandonou o discurso radical e aceitou as regras da democracia, ainda que mentes autoritárias em postos de comando do partido não tenham decidido a mudança de rumos por convicção, mas por razões pragmáticas.
Depois de limitar-se aos círculos letrados, a percepção da crise chegou à grande massa acompanhada de uma forte indignação diante das práticas corruptoras de todo tipo.
Tudo isso conduz a uma descrença nos partidos -em primeiro lugar, no PT, considerando seu passado de defensor da "ética na política"-, nas instituições e nas esperanças do futuro. Em 25 anos de democracia, nunca vimos um quadro tão grave, mesmo que as instituições, ao menos por ora, resistam -graças sobretudo ao comportamento responsável da oposição.
O desencanto pode ter, pelo menos, duas conseqüências. De um lado, há o risco de "banalização do mal" diante do andamento das CPIs, que tendem a se arrastar até perder o interesse, num jogo de cartas marcadas. De outro, há o risco da emergência de práticas populistas com acentos autoritários -um neopopulismo em versão brasileira.
Sobre o último aspecto, não creio que devamos tomar apenas como fantasia que se choca gritantemente com a realidade dos fatos a interpretação conspirativa da crise, fabricada pela cúpula petista e por organizações como o MST, a CUT e a UNE. A irracionalidade do discurso, com o objetivo de fazer crer os que querem crer, é um recurso retórico-mobilizador típico dos regimes populistas, como o caso do chavismo demonstra amplamente.
Nem muito menos cabe desconsiderar a tentativa do "fogo amigo", proveniente de setores do PT -e não só deles-, tentando vender a idéia de que a superação da crise só virá com a "ruptura do modelo", significando a quebra dos princípios de respeito aos contratos e da responsabilidade da política econômica, que tem sido um dos poucos êxitos deste governo.
Quanto às oportunidades que a crise pode oferecer, é impossível deixar de notar, com certo ceticismo, como elas apareceram no curso de crises passadas para logo serem desperdiçadas. Mesmo assim, lembremos que a crise pôs a nu a necessidade de reformas institucionais e administrativas.
No plano político, tornou-se ainda mais premente a reforma política, e por várias razões. Entre elas, para impedir o troca-troca partidário, cujas motivações, muitas vezes, são hoje estarrecedoramente claras; para estabelecer mecanismos como o voto distrital, favorecendo a aproximação entre o eleitor e seu representante; para enfrentar o problema do financiamento dos partidos, outra fonte de escândalos; para introduzir cláusulas de barreira restritivas, embora tenhamos descoberto que, ao lado de partidos de aluguel nanicos, há também, em outros maiores, deputados de aluguel.
Acreditar que reformas institucionais são uma panacéia seria uma ilusão. Como seria também ilusão acreditar que novas fórmulas não encerram problemas, como a da preeminência de máquinas burocráticas partidárias ou a possibilidade malandra de obter tanto recursos públicos como privados, irregularmente, para financiar os partidos. Mas essa é a característica das reformas institucionais, mesmo quando oportunas e indispensáveis. Introduzir, ao mesmo tempo, avanços e novos problemas, à condição de que os primeiros superem em importância os últimos.
Para além de um redesenho de figurinos institucionais, há uma possibilidade positiva de longo prazo incentivada pela crise. Trata-se da mudança de padrões culturais, tomada aqui a expressão "cultura" em seu sentido mais amplo, que se traduz no abandono de comportamentos situados na fronteira do ilícito, ou mesmo no campo das ilicitudes, inaceitáveis para um país civilizado. Essa verdadeira revolução vai além dos marcos de uma geração, mas, se ela não for sendo induzida até que ganhe dinamismo próprio, nunca irá acontecer.

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