Para analistas, pilar ético do PT ruiu MARCELO SALINAS
DA REDAÇÃO
A crise do "mensalão", esquema denunciado pelo deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), segundo o qual o PT pagaria mesada aos partidos da base para votarem com o governo, desencadeou um processo que abalou o "pilar ético" do PT. Essa é a análise dos cientistas políticos Jairo Nicolau e Bolívar Lamounier, entrevistados pela Folha na sexta-feira.
Para Nicolau, "a cúpula do partido não se deu conta do estrago que essa crise está fazendo na imagem que o PT construiu". Lamounier ressalta que o partido sempre arrogou para si o mesmo discurso expressado recentemente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de ser o "mais ético" do Brasil. "Quanto mais alto o coqueiro, maior o tombo", diz.
Lamounier afirma ainda que a estratégia de "blindar" a imagem de Lula não é nova, pois a figura do presidente está, há muito, desassociada à do PT. Jairo Nicolau afirma que a blindagem é generalizada, "por parte do governo, da oposição, do Roberto Jefferson e até da imprensa".
Para os dois cientistas políticos, a aliança com o PMDB não vai resolver os problemas do governo, caso continuem a surgir indícios de corrupção. "Essa obsessão pelo PMDB não me parece fundamentada. Duvido que o governo consiga mais que 50 votos freqüentes do PMDB", diz Nicolau. Para Lamounier, a questão "extravasou a esfera parlamentar".
"Não é possível que se banalize pedido de mesadas e achaques a empresas"
DA REDAÇÃO
O professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) Jairo Nicolau enxerga uma novidade triste no sistema político brasileiro, caso as denúncias de corrupção no governo confirmem-se verdadeiras: a substituição do "modelo" fisiológico e clientelista pela institucionalização da corrupção de fato nas relações interpartidárias.
Folha - Como o senhor avalia a reação do governo Lula à crise?
Jairo Nicolau - Num primeiro momento, o presidente ignorou a crise, depois mandou algumas mensagens em discursos, como é característica dele, e apresentou um pacote de medidas anticorrupção requentadas.
Talvez, se o governo estivesse mais organizado, ele teria condições de reagir com mais eficiência, de maneira mais coordenada. Porém, o que vemos são medidas atabalhoadas, como o principal operador político do governo, José Dirceu, sair do Planalto da maneira que saiu. A cúpula do partido está praticamente zonza. Cada um parece seguir seu rumo: o presidente afasta José Dirceu, mas o partido não afasta seus dirigentes. A bancada tenta afastar o senador Suplicy e depois desiste. Falta um um operador político, um elo que conecte o governo, o partido e a bancada. Mas quem vai assumir essa função nesta altura?
Folha - A imagem do presidente está desassociada à crise? Isto é, a "blindagem" tem sido efetiva?
Nicolau - A blindagem é generalizada, por parte do governo, da oposição, do Roberto Jefferson e até da imprensa. A impressão é a de que há um vale-tudo: desgastar o governo, o PT, os aliados, mas não o presidente. Essa crise pode ir fundo e até impedir que Lula se candidate em 206, mas impeachment, não. Quanto ao PT, parece-me que está mais preocupado em blindar seus próprios dirigentes partidários porque, nas denúncias do Roberto Jefferson, foi acusada a trinca de comando de qualquer partido: o presidente, o secretário-geral e o tesoureiro.
Entendo que há três frentes de blindagem: o presidente e seus assessores, isto é, o governo em si; a base parlamentar, que tenta preservar Lula na CPI; e o PT, que hoje é uma frente para preservar quatro dirigentes históricos. A operação do PT parece ser endógena, não do PT como um todo, mas desses quatro dirigentes, da cúpula, que está olhando mais para dentro do que para fora.
Folha - Essa reforma ministerial seria uma solução para a chamada "crise de governabilidade"?
Nicolau - Essa obsessão pelo PMDB não me parece fundamentada. Duvido que o governo consiga mais do que 50 votos freqüentes do PMDB. O partido não virá inteiro, como já havia acontecido com o Fernando Henrique.
Folha - Como compor, então, uma maioria sólida nesse contexto?
Nicolau - Não há problema em montar um governo técnico, de petistas, com uma base de partidos de esquerda menores. Não há nenhuma emenda constitucional na ordem do dia, ou seja, o governo poderá operar basicamente com maioria simples nas votações. Então, pode-se negociar as votações caso a caso, como o governo fez com os grandes temas nos dois primeiros anos.
Folha - Em que as denúncias prejudicam a imagem do PT?
Nicolau - O PT é um patrimônio da democracia brasileira, construiu uma história singular, com pilares doutrinários claros, e introduziu um fato sociológico novo: trouxe os pobres para a política. Personagens como Benedita da Silva, a ministra Marina Silva e o próprio Lula são exemplos disso. O partido construiu essa reputação com duas bases: as "mãos limpas" e o compromisso com a questão social. Ninguém duvida que o PT tem um compromisso com os setores menos desenvolvidos da sociedade brasileira.
Essa crise, porém, abalou o pilar da ética. Isso é ruim porque ainda que as denúncias sejam falsas, que tudo não passe de uma grande mentira, há aquela sensação de "até o PT está fazendo isso?".
Folha - Mas o senhor entende que as pessoas acreditavam que poderia haver, com o PT, um governo totalmente livre de corrupção?
Nicolau - Se isso [as denúncias] for verdade, a novidade não será a corrupção, mas esse sistema de operação que está sendo descrito. Por exemplo, os acertos que são feitos para apoiar o governo em troca de cargos para apadrinhados, de oferecer legenda para candidaturas e emendas ao Orçamento não violam o Código Penal, não é corrupção. É clientelismo, fisiologismo, mas não corrupção. O novo arranjo, baseado em pagamento em dinheiro, se verdadeiro, é gravíssimo. Seria um sistema operando para além da política partidária tradicional.
Claro que isso não é novo como ação isolada, mas sim como sistema em operação. Operar partidariamente dessa maneira, com achaques a empresas, pedido de mesadas e troca de partidos movidas por luvas financeiras? Não é possível que alguém banalize isso. Mas posso estar sendo ingênuo.
Nicolau - Sim, veja o exemplo do depoimento do Roberto Jefferson na CPI. Ele afirma, diante de 65 parlamentares, que todos ali tinham contas eleitorais adulteradas e ninguém se levantou e contra-argumentou. É muito esquisito nenhum deputado ter se indignado com isso. Se boa parte do que está sendo dito for provado, a minha interpretação do sistema política era, sim, ingênua.
"Complô das elites é estapafúrdio, é mistura de bobagem com paranóia"
DA REDAÇÃO
A tese de que há um complô das elites para derrubar o presidente Lula inicialmente levantada por membros do PT, que parecia esquecida e foi reavivada na última quinta-feira pelo tesoureiro do partido, Delúbio Soares, é estapafúrdia, na visão do cientista político Bolívar Lamounier. Para ele, as elites não estão insatisfeitas com Lula e esse argumento é comum em partidos de esquerda que, segundo diz, "cultivam teorias conspiratórias". A crise, afirma, é resultado de desavenças na base de sustentação do governo.
Folha - Como o senhor avalia a reação do governo Lula à crise?
Bolívar Lamounier - Vejo dois momentos. No primeiro a reação foi de perplexidade, uma reação tensa. Começaram a procurar improvisadamente uma explicação abraçando a tese do complô das elites, que avalio como estapafúrdia. Junto com essa tese, o presidente fez aquele discurso em Goiânia, de que ele é o mais ético do país. O que se armava era uma certa tolice porque o presidente estava sendo infeliz na declaração dele, e o PT encampava essa tese pitoresca. É uma mistura de bobagem com paranóia.
Folha - Por que o senhor considera essa tese uma bobagem?
Lamounier - Por vários motivos entre os quais enumero três. Primeiro, até as pedras aqui da minha rua sabem que o problema surgiu na base de sustentação do presidente, com uma briga do PTB com o PP e o PL em torno, provavelmente, de dinheiro. Segundo, não sei qual é a definição de elite de quem inventou essa tese, mas, na minha definição, a elite não está nada insatisfeita com o governo Lula.
Terceiro, comparando-se com outros momentos históricos do Brasil, é difícil encontrar um exemplo em que os partidos de oposição tenham se comportado com a moderação como agora.
Folha - No seu entendimento, o que motivaria essa retórica?
Lamounier - Primeiro, porque o governo foi pego de surpresa, sem que houvesse uma interpretação da conjuntura ou, numa hipótese mais grave, porque as acusações tenham alguma procedência. Segundo, é que partidos e intelectuais de esquerda freqüentemente cultivam teorias conspiratórias. Não é novidade. É a primeira tábua de salvação a que se agarram.
Folha - E quanto ao segundo momento sobre a reação à crise, ao qual o senhor se referiu?
Lamounier - No segundo momento, entrou um programa mais refletido do presidente, que se convenceu de que precisaria separar a sua figura do PT e da direção do PT e oferecer uma resposta mais propositiva. A questão avançou e ele então se viu diante da necessidade de tentar reforçar sua base parlamentar atraindo o PMDB. Isso é compreensível, mas não me parece que vá resolver a questão se os indícios continuarem a se acumular. A questão extravasou a esfera parlamentar.
Folha - Parece haver um esforço generalizado para "blindar" a imagem do presidente Lula. Como o senhor interpreta isso?
Lamounier - A figura do Lula está descolada do PT faz tempo. Ele é mais respeitado que o PT. É fácil constatar isso nos resultados eleitorais. Ele ganhou a Presidência, mas o PT não elegeu ninguém. O Lula ganhou facilmente a eleição, mas elegeu 92 deputados, menos de 20% da Câmara. Nos governos estaduais ganhou apenas em três Estados. Ou seja, não há proporção alguma entre o desempenho do partido e o do presidente.
Folha - O senhor entende que PT não seria o que é sem Lula?
Lamounier - Certamente. Se Lula tivesse saído do PT há 15 anos, o PT seriam quatro ou cinco partidos de esquerda pequenos. O PT é uma espécie de arquipélago de grupos cujo ponto de convergência é Lula. Ele precisou do PT para fazer sua carreira política, e o partido precisou dele para crescer.
Folha - O que a as denúncias poderiam acarretar à imagem do PT?
Lamounier - É preciso ponderar que, por enquanto, temos apenas indícios de corrupção. Mas isso se chocou frontalmente com a imagem do PT como sendo o partido mais ético. O partido sempre disse como partido aquilo que o presidente disse como pessoa física: "Eu sou o mais ético do Brasil". Aí é aquela história: quanto mais alto o coqueiro maior o tombo.
Uma conseqüência disso que já vemos é que o PT perde espaço no governo.
Folha - O discurso do tesoureiro do PT, na sexta-feira, não seria uma tentativa de preservar a imagem do partido, de que a crise se deve aos "setores conservadores"?
Lamounier - Não sei o que o Delúbio [Soares] entende por "setores conservadores". Uma certa mania de onipotência o PT certamente tem. Por mais que tenha edulcorado essa imagem e adquirido tons de Duda Mendonça, um certo discurso de prepotência, de quem detém toda a verdade, o PT sempre teve. Isso alimentou um sentimento de prepotência.
Essa visão muito possivelmente influenciou no aparelhismo, e, apenas como hipótese, no hegemonismo em termos de ministérios e cargos, o que agravou o problema da fragmentação e dos acirramentos partidários.
Lamounier - O PSDB tem uma auto-avaliação de que tem mais quadros técnicos, mais consistência intelectual. Mas não vai além disso. Não vejo nenhum absolutismo ético no PSDB.
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