Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, julho 25, 2005

O projeto brasileiro de pilhagem Ivan Carvalho Finotti



 O Estado de S. Paulo (24/07/05)

Para historiador, escândalos políticos apenas reiteram o sucesso da manutenção do arcaísmo

"A grande diferença está em que os de agora crêem que sua ação é legitimada por sua origem social e por pertencerem ao partido em nome do qual lavam dinheiro e fazem tráfico de influência. Por isso reúnem-se à luz do dia em agências bancárias, enquanto a gangue de PC Farias se juntava à luz de velas, na madrugada" Um projeto vitorioso guia o Brasil há 500 anos. Ao contrário do senso comum, que imagina que o Brasil fracassou miseravelmente por causa da desigualdade social, nosso país é um sucesso. Da época do descobrimento até hoje, o projeto brasileiro funcionou perfeitamente: o problema é que esse projeto é o do arcaísmo.
Eis uma das idéias defendidas pelo historiador Manolo Florentino, co-autor do livro O Arcaísmo como Projeto (Civilização Brasileira, 2001). "Os países são aquilo que suas elites querem que eles sejam. Logo, embora fruto de muita adaptação ao imponderável, reproduzir-se por meio da imensa diferença social parece ter sido um projeto exitoso", afirma o doutor em História e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que acaba de lançar a obra Tráfico, Escravidão e Liberdade, pela mesma editora Civilização Brasileira.

Em entrevista por e-mail ao Aliás, Manolo Florentino, de 47 anos, falou do conceito do arcaísmo histórico e de suas relações com a atual crise política brasileira: "Os escândalos dos últimos tempos apenas reiteram a existência desses arcaísmos". Abaixo, a entrevista.

ASSALTO DE AMADORES

O mais recente assalto ao Estado brasileiro é obra de amadores, tolos que imaginaram que interagir com uma cultura política complexa e sofisticada como a nossa é coisa que se aprende por correspondência. Não perceberam que no coração do Brasil não se pronuncia "poder", mas sim "puder". A velocidade com que drenavam dinheiro ilícito nada mais é do que signo desse amadorismo, crianças deslumbradas roubando chocolate na própria fábrica.

Aliás, embora existam pontos de contato entre a meia dúzia de provincianos que saqueou o Brasil na era Collor e a meia dúzia de sindicalistas que faz o mesmo hoje, a grande diferença está em que os "companheiros" de agora crêem que sua ação é legitimada por sua origem social e pelo pertencimento ao partido em nome do qual lavam dinheiro e fazem tráfico de influência.

Por isso reúnem-se à luz do dia em agências bancárias (diz-se que no início entravam no Congresso com malas de dinheiro), enquanto a gangue de PC Farias se juntava à luz de velas, na madrugada, falando baixinho para ninguém ouvir. PC Farias não apenas não tinha a história a seu lado como também a temia. Delúbio, Silvinho e companhia acreditam que ela lhes passou procuração.

O SAQUE COMO NORMA

O ideal de um Estado laico, profissional e infenso à corrupção é invenção recente. Na Antiguidade compravam-se cargos políticos; na África, até hoje, boa parte da corrupção se insere em circuitos simbólicos tradicionais de dom e contra-dom. Na América portuguesa, locupletar-se era a norma, até porque com o cargo vinham os privilégios que podiam incluir se apropriar legitimamente de parte do que era gerado pelo serviço em questão (distribuição da justiça, serviço militar etc.). Até a Independência, era quase impossível saber os limites entre os bens do Rei e os bens da Nação.

Como a personalização das relações é traço recorrente de nossa história, é óbvio que as redes e trocas daí derivadas incorporam-se à tradição política e administrativa corrente. Eis o pano de fundo que eventualmente legitima e generaliza a corrupção. É a isso que se referem tanto PC Farias quanto Lula quando dizem que práticas como doações ilegais de campanha são universais entre nós. É a universalidade que eles ressaltam, e não o aspecto criminal nela embutida. O problema é que se movimentar nesse pano de fundo é coisa de profissionais, não de amadores, venham eles das Alagoas ou da burocracia sindical do ABC paulista.

ARCAÍSMOS

É possível encontrar algo de nosso passado colonial assumidamente arcaico pairando no Brasil de hoje. Embora não me agrade muito falar em superpermanências históricas, a desigualdade brasileira é extremadamente bandeirosa no tempo, tal como a cidadania incompleta, a personalização das relações e das práticas no âmbito da política ou, o que é o mesmo, a pouca confiança nos mecanismos de representação.

Os escândalos dos últimos tempos apenas reiteram a existência desses arcaísmos, mas com uma agravante: podem igualmente referendar o preconceito segundo o qual os mais humildes não têm a menor capacidade de gerenciar o Estado e oferecer alternativas sociais.

ARCAÍSMO PETISTA

O arcaísmo presente no PT não é, em grande medida, caudatário da história brasileira. Ele vem de fora, vem da hoje em dia ultrapassada cultura internacional dos partidos marxistas e leninistas, e se expressa na própria auto-imagem que grande parte dos petistas tem de si mesmos e do papel de seu partido na história.

Com raras exceções, são fundamentalistas regidos pelo princípio da autoridade e pela máxima segundo a qual os fins justificam os meios. Acreditam deter o monopólio da moral e da ética e, além disso, que são portadores de uma missão histórica cuja origem não explicam - algo como os sinais de Deus dos protestantes. Ao detonar essa auto-imagem, a crise atual assume contornos letais para a militância, pois a linguagem que estrutura o real simplesmente se esvai e, com ela, a própria realidade vira farelo. O PT corre o risco de perder seu traço distintivo: a militância aguerrida e sempre pronta à ação.

ARCAÍSMO BRASILEIRO

O livro O Arcaísmo como Projeto foi escrito por mim e pelo também professor João Fragoso em um contexto de intenso diálogo com a Teoria da Dependência. Afirmávamos que se há algum "sentido" em nossa história, este se traduz não exatamente por meio da chamada vocação exportadora, mas sim através de desígnios muito mais tangíveis.

Em síntese, desde a época colonial o Brasil se reproduziria por meio da extrema desigualdade social, o que alimentaria uma espécie de ideal aristocrático marcado pela profunda distância em relação ao mundo do trabalho e, até como decorrência, pela incessante busca do comércio e do rentismo como estratégias de reprodução das fortunas. Claro, questionava-se assim a imagem tradicional dos senhores de engenho como monopolizadores do topo da pirâmide socioeconômica.

Nosso trabalho foca o Rio de Janeiro nas últimas décadas da colonização. Seria de esperar por estudos que abordassem outras épocas e regiões de nosso passado colonial para proceder às generalizações. Pelo que tenho entendido, têm sido encontrados elementos que reiteram algumas dessas hipóteses para os casos dos Estados do Rio Grande do Sul, de São Paulo, do Pará e de Minas Gerais.

ARCAÍSMO VITORIOSO

Falamos em projeto arcaico porque, ao fim e ao cabo, os países são aquilo que suas elites querem que eles sejam. Logo, embora fruto de muita adaptação ao imponderável, reproduzir-se por meio da imensa diferença social parece ter sido um projeto exitoso.

Quando falo em extrema diferenciação estou me referindo ao conjunto dos homens livres, pois, obviamente, escravos não contam. Aliás, a escravidão representou exatamente isto: um meio de reiterar a diferenciação entre os homens livres.

ESPÍRITO DE CORTE

As redes sociais (baseadas no parentesco ou não) eram o esteio da ação política colonial, que a todos protegia e a todos podia implicar.

Durante a época colonial a falsidade ideológica ou a formação de quadrilhas tinha a ver com lesar a Coroa. No fundamental, era esse o limite entre o lícito e o ilícito no campo estritamente político. São inúmeros os registros de acusações envolvendo vice-reis, governadores, ouvidores e demais. Mas o curioso era a maneira de tratar os desvios: em geral de modo discreto, como uma espécie de concerto entre iguais, sempre preservando o cargo e possibilitando a reabilitação do réu.

Esse espírito de Corte obviamente não encontra condições de vicejar hoje em dia, embora volta e meia apareça um ou outro que insista em apostar nessa miragem.

LAMAÇAL

O que está ocorrendo nas últimas semanas lamentavelmente sugere que a tragédia brasileira tem muitos sócios. Muitos e provenientes de todos os estratos sociais e partidos políticos, como aliás demonstra o fato de descobrir-se até membros da oposição em meio ao lamaçal. É triste porque sugere um alto nível de adesão ao status quo. E a direita feroz, que anda meio escondidinha, simplesmente adora.

LEGÍTIMO, MAS IMORAL

Vivemos em um Estado de Direito, no qual o habeas-corpus preventivo é dispositivo legítimo. Não há nada de privilégio nisso, a não ser o fato de requerer grana para pagar um advogado minimamente preparado. O que não significa que desfrutar de semelhante dispositivo às vezes não seja imoral, como parece ser o caso de Delúbio, Silvinho e companhia.

PILHÉRIA

O Brasil é um país ensimesmado e o brasileiro um xenófobo de primeira, ao menos no campo discursivo. Entre outras, é por isso que não nos damos lá muito bem com os portenhos, igualmente xenófobos em alto grau. De todo modo, é possível que o ufanismo tenha crescido nos últimos anos, até porque os seus delírios por vezes fazem com que Lula e o PT se vejam como porta-vozes dos humildes de todo o planeta, uma espécie de anti-Bush tapuia, não raro motivo de pilhéria em círculos diplomáticos profissionais, inclusive brasileiros.

A DEMOCRACIA RESISTIRÁ?

Sem querer ser catastrofista, o cenário que surge no horizonte se mostra cada vez mais afeito a criaturas como o ex-governador do Rio Anthony Garotinho e sua fala evangélica altamente organizadora. Não estou muito certo de que a democracia brasileira conseguirá resistir a semelhante sina.

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