Como o playboy e o retirante sinalizam que o Brasil continua o mesmo
São contraditórias as sensações provocadas pelo escândalo de corrupção ora em curso. A surpresa talvez seja a maior delas. Não se esperava que o partido do governo, o PT, tivesse se refestelado com tanto entusiasmo nas práticas correntes da política nacional. Práticas que ele criticava - e crítica que foi um elemento para conseguir o voto dos eleitores. Agora se constata que o PT chegou ao poder não só pelas críticas retóricas à corrupção, e sim porque seus dirigentes armaram um caixa dois colossal, tentacular.
Depois da surpresa vem o fastio. Tudo isso, esses depoimentos de zumbis em CPIs, o careca, a empolação dos parlamentares inquisidores, as gravatas de mau gosto, a sintaxe capenga, o autismo planaltino, os vexames, a mentirada, as armações apressadas, tudo isso já foi visto e revisto.
Os mais velhos lembram do escândalo Collor, aquele que foi alimentado pelo lema "É preciso passar o Brasil a limpo" e acabou com a destituição do presidente. Houve depois o escândalo dos Anões do Orçamento, cujo mote era a regeneração do Congresso e terminou com meia dúzia de cassações. O escândalo de hoje prova que o Brasil não foi passado a limpo, que o Congresso não se regenerou, que Lula segue o destino de Collor, que política e torpeza são sinônimos. Que tudo continua na mesma.
É famosa a afirmação de Marx, partindo de Hegel, de que os principais fatos históricos ocorrem duas vezes: na primeira como tragédia e na segunda como farsa. No Brasil a máxima vale pela metade. Os escândalos Collor e Lula provam que, de fato, a repetição ocorre duas vezes: só que na primeira como farsa e na segunda como farsa também. Senão, vejamos.
Roberto Jefferson tomou o lugar de Pedro Collor. Delúbio e Marcos Valério substituem PC Farias. José Dirceu fez o mesmo na Casa Civil que Marcos Coimbra. A secretária Sandra virou secretária Fernanda. A Operação Paraguai se inspirou na Operação Uruguai. João Paulo presidiu a Câmara à la Ibsen Pinheiro. A estrela petista virou arranjo floral no jardim do Alvorada e as cataratas embelezaram o jardim da Casa da Dinda. Rosane Collor fez estripulias na LBA e o filho Fábio Silva fez parceria com a Telemar. O Banco Rural repete-se a si mesmo nas traficâncias. Palocci aplica o breviário de Marcílio Marques Moreira e a burguesia segue gritando: é preciso blindar a política econômica, viva a austeridade fiscal, é imprescindível pagar os juros da dívida, não venham com a demagogia de distribuir renda.
Os personagens são os mesmos. Só mudaram os atores. Uns usavam o poder para promover negociatas e enriquecer. Outros usaram o poder para promover negociatas em prol do partido e dos trabalhadores. Durma-se com um barulho desses.
Aqui e ali se afirma solenemente: Lula não é Collor. A afirmação é de uma obviedade dolorosa. Não dá para comparar o playboy alagoano com o retirante pernambucano. Nem o político oportunista e aventureiro com o líder sindical que virou burocrata partidário. Mas, enquanto presidentes, eles têm pontos de contato.
Ambos consideraram que chegar ao Planalto foi-lhes o ápice da carreira e da vida. Governar, para eles, foi e é menos importante. Os dois não gostam do jogo tradicional da política, de sentar com parlamentares e líderes partidários para ouvir pedidos. Tanto Collor como Lula adoram viajar e fazer discursos. Os dois detestam jornalistas. A relação que apreciam é a da subordinação - via televisão, no caso de Collor; em palanques, no de Lula. Ambos acreditam que têm uma comunicação direta com o povão. Têm uma crença cega, irracional, de que não perderão jamais o toque mágico dessa comunicação direta.
A semelhança é maior no que diz respeito à resposta deles à crise política. Quando acossados pelas denúncias de corrupção, ambos buscaram os adversários da véspera, as raposas do sistema político. Collor entregou-se ao PFL de Jorge Bornhausen e ao PDT de Leonel Brizola. Lula jogou-se nos braços do PMDB de José Sarney e no PP de Severino Cavalcanti. Os dois presidentes tentaram atrair os tucanos, que, depois de inúmeras hesitações, mantiveram-se à margem.
No plano pessoal, psicológico, conforme contou anos depois, Collor deixou-se abater por uma funda depressão. Tornou-se abúlico. Oscilava entre os curtos momentos de euforia e onipotência e semanas inteiras de prostração. Deixou de ter estratégia. Reagia aos fatos do dia-a-dia. Até que, lasso, largou os braços. Foi então levado, ao sabor dos acontecimentos, ribanceira abaixo.
De Lula, pouco se sabe de suas reações, tamanho é o cerco que seus assessores diretos armaram em torno dele. Mas, à distância, dá para perceber que o presidente está bastante diferente do que foi, do que era até meses poucos atrás. Em Paris, ele estava, literalmente, um caco. Homem de riso fácil, ele agora parece acabrunhado, lúgubre. Dá a impressão de estar isolado, tomado por uma tristeza paralisante.
Numa cerimônia para motoristas de táxi, no Palácio do Planalto, em agosto de 1992, não estava previsto que Collor discursasse. Num dos seus rompantes de euforia, ele resolveu falar de improviso. Referiu-se a uma "Central Única dos Conspiradores", aqueles que denunciavam a corrupção em seu governo. "Vamos mostrar a essa minoria que intranqüiliza diariamente o País que já é hora de dar um basta a tudo isso", disse. E conclamou a população a sair de verde-e-amarelo nas ruas três dias depois, um domingo.
Em três dias, tudo se precipitou. A Caixa Econômica Federal botou na televisão peças de propaganda com trechos da conclamação de Collor. Às pressas, sem nenhuma organização sindical ou estudantil de vulto, foram convocadas manifestações contra Collor, em que todos deveriam se vestir de negro. No domingo, não houve quem saísse de verde-e-amarelo às ruas. Já as manifestações de gente vestida de preto pipocaram por todo o País, de Porto Alegre a Macapá. As manifestações se seguiram num ritmo alucinante, semanal, reunindo milhões de pessoas. Estão entre as maiores da história do Brasil, só equiparáveis às da campanha pelas eleições diretas.
O que se quer dizer é o seguinte: o destino de Lula nos próximos meses está ligado às manifestações de rua. Collor só caiu porque houve um movimento popular. O governo Lula poderá ser abalado por manifestações de rua. Há condições e ambiente político para que elas venham a ocorrer, a médio prazo. Os depoimentos na CPI são transmitidos ao vivo pela televisão, e os noticiários de rádio e TV, para não falar da imprensa escrita, são intensos. Piadas sobre malas e cuecas de dinheiro estão em todas as rodas. O escândalo parece estar irritando e revoltando largos setores da população.
Lula sabe disso. Tanto que chamou o presidente da Central Única dos Trabalhadores, Luiz Marinho, para integrar o seu governo, como ministro do Trabalho. E ele conta com um partido aliado, o PCdoB, na direção da União Nacional dos Estudantes. Sem o apoio e a estrutura da CUT e da UNE, é difícil organizar atos contra o governo. E é inimaginável que um Geraldo Alckmin ou um Arthur Virgílio mobilizem as massas. Mas convém lembrar que as primeiras manifestações contra Collor, como a do domingo negro, foram espontâneas e desorganizadas.
A repetição do escândalo Collor no escândalo Lula é prova de que o sistema político brasileiro, sem impulso externo, está fadado a se repetir. O triste é que nem a indignação generalizada, nem as manifestações populares impedem a repetição dos escândalos. No final, o sistema político dá um jeito de promover a conciliação. No caso de Collor, os banqueiros, empreiteiros e empresários que deram centenas de milhões de dólares a PC Farias não foram punidos. A CPI considerou que eles eram vítimas de extorsão, e não corruptores ativos. É por isso que vários deles, passados alguns anos, foram procurar Valério e Delúbio.
São contraditórias as sensações provocadas pelo escândalo de corrupção ora em curso. A surpresa talvez seja a maior delas. Não se esperava que o partido do governo, o PT, tivesse se refestelado com tanto entusiasmo nas práticas correntes da política nacional. Práticas que ele criticava - e crítica que foi um elemento para conseguir o voto dos eleitores. Agora se constata que o PT chegou ao poder não só pelas críticas retóricas à corrupção, e sim porque seus dirigentes armaram um caixa dois colossal, tentacular.
Depois da surpresa vem o fastio. Tudo isso, esses depoimentos de zumbis em CPIs, o careca, a empolação dos parlamentares inquisidores, as gravatas de mau gosto, a sintaxe capenga, o autismo planaltino, os vexames, a mentirada, as armações apressadas, tudo isso já foi visto e revisto.
Os mais velhos lembram do escândalo Collor, aquele que foi alimentado pelo lema "É preciso passar o Brasil a limpo" e acabou com a destituição do presidente. Houve depois o escândalo dos Anões do Orçamento, cujo mote era a regeneração do Congresso e terminou com meia dúzia de cassações. O escândalo de hoje prova que o Brasil não foi passado a limpo, que o Congresso não se regenerou, que Lula segue o destino de Collor, que política e torpeza são sinônimos. Que tudo continua na mesma.
É famosa a afirmação de Marx, partindo de Hegel, de que os principais fatos históricos ocorrem duas vezes: na primeira como tragédia e na segunda como farsa. No Brasil a máxima vale pela metade. Os escândalos Collor e Lula provam que, de fato, a repetição ocorre duas vezes: só que na primeira como farsa e na segunda como farsa também. Senão, vejamos.
Roberto Jefferson tomou o lugar de Pedro Collor. Delúbio e Marcos Valério substituem PC Farias. José Dirceu fez o mesmo na Casa Civil que Marcos Coimbra. A secretária Sandra virou secretária Fernanda. A Operação Paraguai se inspirou na Operação Uruguai. João Paulo presidiu a Câmara à la Ibsen Pinheiro. A estrela petista virou arranjo floral no jardim do Alvorada e as cataratas embelezaram o jardim da Casa da Dinda. Rosane Collor fez estripulias na LBA e o filho Fábio Silva fez parceria com a Telemar. O Banco Rural repete-se a si mesmo nas traficâncias. Palocci aplica o breviário de Marcílio Marques Moreira e a burguesia segue gritando: é preciso blindar a política econômica, viva a austeridade fiscal, é imprescindível pagar os juros da dívida, não venham com a demagogia de distribuir renda.
Os personagens são os mesmos. Só mudaram os atores. Uns usavam o poder para promover negociatas e enriquecer. Outros usaram o poder para promover negociatas em prol do partido e dos trabalhadores. Durma-se com um barulho desses.
Aqui e ali se afirma solenemente: Lula não é Collor. A afirmação é de uma obviedade dolorosa. Não dá para comparar o playboy alagoano com o retirante pernambucano. Nem o político oportunista e aventureiro com o líder sindical que virou burocrata partidário. Mas, enquanto presidentes, eles têm pontos de contato.
Ambos consideraram que chegar ao Planalto foi-lhes o ápice da carreira e da vida. Governar, para eles, foi e é menos importante. Os dois não gostam do jogo tradicional da política, de sentar com parlamentares e líderes partidários para ouvir pedidos. Tanto Collor como Lula adoram viajar e fazer discursos. Os dois detestam jornalistas. A relação que apreciam é a da subordinação - via televisão, no caso de Collor; em palanques, no de Lula. Ambos acreditam que têm uma comunicação direta com o povão. Têm uma crença cega, irracional, de que não perderão jamais o toque mágico dessa comunicação direta.
A semelhança é maior no que diz respeito à resposta deles à crise política. Quando acossados pelas denúncias de corrupção, ambos buscaram os adversários da véspera, as raposas do sistema político. Collor entregou-se ao PFL de Jorge Bornhausen e ao PDT de Leonel Brizola. Lula jogou-se nos braços do PMDB de José Sarney e no PP de Severino Cavalcanti. Os dois presidentes tentaram atrair os tucanos, que, depois de inúmeras hesitações, mantiveram-se à margem.
No plano pessoal, psicológico, conforme contou anos depois, Collor deixou-se abater por uma funda depressão. Tornou-se abúlico. Oscilava entre os curtos momentos de euforia e onipotência e semanas inteiras de prostração. Deixou de ter estratégia. Reagia aos fatos do dia-a-dia. Até que, lasso, largou os braços. Foi então levado, ao sabor dos acontecimentos, ribanceira abaixo.
De Lula, pouco se sabe de suas reações, tamanho é o cerco que seus assessores diretos armaram em torno dele. Mas, à distância, dá para perceber que o presidente está bastante diferente do que foi, do que era até meses poucos atrás. Em Paris, ele estava, literalmente, um caco. Homem de riso fácil, ele agora parece acabrunhado, lúgubre. Dá a impressão de estar isolado, tomado por uma tristeza paralisante.
Numa cerimônia para motoristas de táxi, no Palácio do Planalto, em agosto de 1992, não estava previsto que Collor discursasse. Num dos seus rompantes de euforia, ele resolveu falar de improviso. Referiu-se a uma "Central Única dos Conspiradores", aqueles que denunciavam a corrupção em seu governo. "Vamos mostrar a essa minoria que intranqüiliza diariamente o País que já é hora de dar um basta a tudo isso", disse. E conclamou a população a sair de verde-e-amarelo nas ruas três dias depois, um domingo.
Em três dias, tudo se precipitou. A Caixa Econômica Federal botou na televisão peças de propaganda com trechos da conclamação de Collor. Às pressas, sem nenhuma organização sindical ou estudantil de vulto, foram convocadas manifestações contra Collor, em que todos deveriam se vestir de negro. No domingo, não houve quem saísse de verde-e-amarelo às ruas. Já as manifestações de gente vestida de preto pipocaram por todo o País, de Porto Alegre a Macapá. As manifestações se seguiram num ritmo alucinante, semanal, reunindo milhões de pessoas. Estão entre as maiores da história do Brasil, só equiparáveis às da campanha pelas eleições diretas.
O que se quer dizer é o seguinte: o destino de Lula nos próximos meses está ligado às manifestações de rua. Collor só caiu porque houve um movimento popular. O governo Lula poderá ser abalado por manifestações de rua. Há condições e ambiente político para que elas venham a ocorrer, a médio prazo. Os depoimentos na CPI são transmitidos ao vivo pela televisão, e os noticiários de rádio e TV, para não falar da imprensa escrita, são intensos. Piadas sobre malas e cuecas de dinheiro estão em todas as rodas. O escândalo parece estar irritando e revoltando largos setores da população.
Lula sabe disso. Tanto que chamou o presidente da Central Única dos Trabalhadores, Luiz Marinho, para integrar o seu governo, como ministro do Trabalho. E ele conta com um partido aliado, o PCdoB, na direção da União Nacional dos Estudantes. Sem o apoio e a estrutura da CUT e da UNE, é difícil organizar atos contra o governo. E é inimaginável que um Geraldo Alckmin ou um Arthur Virgílio mobilizem as massas. Mas convém lembrar que as primeiras manifestações contra Collor, como a do domingo negro, foram espontâneas e desorganizadas.
A repetição do escândalo Collor no escândalo Lula é prova de que o sistema político brasileiro, sem impulso externo, está fadado a se repetir. O triste é que nem a indignação generalizada, nem as manifestações populares impedem a repetição dos escândalos. No final, o sistema político dá um jeito de promover a conciliação. No caso de Collor, os banqueiros, empreiteiros e empresários que deram centenas de milhões de dólares a PC Farias não foram punidos. A CPI considerou que eles eram vítimas de extorsão, e não corruptores ativos. É por isso que vários deles, passados alguns anos, foram procurar Valério e Delúbio.
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