Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, julho 19, 2005

Miriam Leitão :Sem explicação

o globo

A entrevista do presidente Lula em Paris é desrespeitosa à imprensa brasileira, pela forma como foi feita, e insultuosa ao país, pelo conteúdo do que disse. Em todo o seu mandato, Lula tem tratado os jornalistas com desprezo. Aceita apenas os longos monólogos, nunca o rigor de uma entrevista séria, com livre direito do contraditório. Mas pior o conteúdo que a forma. Ele foi a Paris, vejam só o local, dizer que o Brasil não é um país sério.
Na entrevista que ele concedeu na França, não era possível disfarçar o amadorismo da repórter que, numa pergunta, dirigiu-se ao presidente com o impróprio pronome "você" para, na pergunta seguinte, exagerar com o "vossa excelência". Jornalistas não usam nenhum dos dois tratamentos, apenas o cerimonioso "senhor", que distancia e não bajula. Mesmo diante de perguntas lamentáveis a facilitar seu trabalho, o presidente Lula disse impropriedades.


Atribui-se a Charles de Gaulle a infeliz frase de que "O Brasil não é um país sério". Talvez o líder francês tenha dito, talvez não, mas o país se ofendeu da mesma forma. E tem tentado seriamente, nas últimas duas décadas, livrar-se desse estigma.

Pois bem, Lula saiu daqui, voou no seu avião de 56 milhões de dólares, para, de lá, mandar dizer que o que o PT fez foi exatamente o que todo mundo faz no Brasil. Qual a diferença entre essa frase e a dita por PC Farias numa outra CPI? Naquela época, querendo dizer que todos os políticos tinham os mesmos padrões morais que ele, PC disse: "Estamos todos sendo hipócritas aqui." Aquela frase não ofendeu ninguém. PC Farias era um pária na política brasileira, chegara não se sabe de onde, a bordo do fenômeno da falsa promessa de caçar marajás. Completamente diferente é ver o mesmo conformismo com o desvio sendo demonstrado por um presidente da República: "O que o PT fez do ponto de vista eleitoral é o que é feito no Brasil sistematicamente", disse Lula na entrevista.

O que é sistematicamente feito no Brasil? Pegar empréstimos com o aval do fornecedor do governo, que pega outro empréstimo e dá como garantia o contrato com o governo e diz que é para o partido do governo? Essa promiscuidade é normal? Montar numa sala dentro do Palácio uma central de distribuição de cargos sob o comando de pessoas sem cargos na máquina pública? O que é feito sistematicamente? Ocupar a máquina com os quadros partidários, transformar cargos públicos em centrais de arrecadação? O presidente da República acha normal o caixa dois?

A TV Globo esclareceu que não teve interferências nas perguntas, apenas comprou o direito de transmiti-la. Ao pôr no ar a entrevista, ajudou a revelar duas coisas: a estranha avaliação do presidente da República sobre o que se faz no Brasil "sistematicamente" e a relação que ele quer ter com os veículos da imprensa nacional, a quem recusa sistematicamente conceder entrevistas. Fica-se sabendo, graças à divulgação da entrevista, que Lula prefere assim, perguntas do tipo alavanca, que o ajudem, como aquela: "Há males que vêm para bem?" E, desta forma, ele pode dizer que "doa a quem doer", o "o governo vai ser implacável com a corrupção". Sem que nada socorresse o jornalismo nesse diálogo de faz-de-conta. "Onde o pai Lula errou?", perguntou a repórter, referindo-se ao "filho" PT. Foi quando Lula mostrou o que pensa.

A estratégia do presidente foi acusar o PT. O governo dele apura como nunca se apurou, já prendeu, de verdade, mais de mil pessoas, garantiu. O PT tinha os melhores quadros do Brasil, eles foram para o governo dele e aí o partido cometeu erros e agora tem que explicar ao país os erros que cometeu, afirmou o presidente.

Se o problema foi só do partido, por que tantos foram demitidos dentro do governo Lula, a começar pelo chefe da Casa Civil, um dos dirigentes do qual ele desfalcou o PT? Nada se segura nesta tese de tentar jogar sobre o partido toda a culpa da grande confusão que houve, exatamente pelo erro de se misturar partido e governo.

Tanto que mais adiante — à pergunta: "Vossa Excelência sente mais peso hoje do que quando foi eleito presidente da República?" — Lula disse que agora deveria ser a hora de colher o bom momento econômico. "Não estava previsto acontecer era nenhum erro político, nenhuma crise mais forte, mas aconteceu." Ora, se a crise é só do PT que decidiu fazer o que se faz sistematicamente no Brasil, não deveria haver risco algum. Mas Lula vê risco de o país perder uma chance. "O Brasil é mais respeitado hoje no mundo." O mundo, felizmente, sempre separou o Brasil de seu governo, tanto que, em plena crise Collor, o país viu desembarcar no Rio dirigentes do mundo inteiro para discutir o destino do planeta na Rio 92.

A assessoria de imprensa do presidente Lula quis garantir a ele um ambiente confortável, livre das incômodas perguntas diretas ao ponto, livre do risco de uma segunda pergunta mostrando a inconsistência do seu pensamento. Fracassou porque não conseguiu defendê-lo de si mesmo. Lula contou ao país que o PT, que chegou ao poder garantindo que seria diferente, fez o que "sistematicamente" se faz. Lula encerrou a entrevista falando sobre 2006: "O Brasil está no caminho certo e não tem por que mudar de rota." Não, o país está num descaminho, vivendo a pior crise da sua história recente, sem que o presidente da República explique ao país como vai superá-la.

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