Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, julho 19, 2005

Merval Pereira A farsa

o globo

Por mais que tentem preservá-lo, o presidente Lula se aproxima cada vez mais do centro da crise política em curso no país, numa demonstração de que é quase impossível separá-lo de seus antigos companheiros de partido. Ao assumir a versão de que o PT "fez o que é feito no Brasil sistematicamente" em termos de financiamentos eleitorais, concomitantemente às versões dadas pelo lobista Marcos Valério e pelo ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares, o presidente avaliza a tentativa de montar uma farsa que restrinja à legislação eleitoral as punições às transgressões cometidas, retirando o dinheiro público do foco da discussão.



Uma história só se repete em tom de farsa, já ensinou Marx. Mas os petistas parece que não aprenderam essa lição marxista e insistem, 13 anos depois, em repetir a mesma história rocambolesca de um empréstimo, com que o ex-presidente Collor tentou transformar em dinheiro "quente" o que tinha roubado dos cofres públicos.

O comentário de Lula sobre financiamentos eleitorais é infeliz em diversos aspectos, o principal deles a falta de repúdio presidencial a essa prática que diz generalizada. Mas não foi o PT o partido que chegou ao poder prometendo fazer mudanças nos hábitos e costumes políticos? E não foram os petistas que reagiram, indignados, diante das primeiras acusações de corrupção, dizendo que a oposição queria igualar todos os partidos por baixo?

Agora, esse mesmo PT, e usando a palavra do presidente da República, reivindica para si um crime que seria habitual no financiamento de campanhas políticas, como se, igualando-se aos demais partidos que antes criticava, desaparecesse o crime.

Como o próprio Lula disse, numa estranha compulsão que só Freud explica, "a desgraça da mentira é que você, ao contar a primeira, passa a vida inteira mentindo tentando justificar a mentira que você contou". A começar pelo fato de que a CPI, que agora ele diz ser a coisa mais normal do mundo, foi arrancada a fórceps no Congresso, com pedidos pessoais de Lula para que aliados retirassem suas assinaturas. Até mesmo o deputado Roberto Jefferson, que ainda era "parceiro" naquela ocasião, recebeu o apelo de Lula por telefone.

Perdida a batalha, até hoje os governistas tentam pôr obstáculos às investigações da CPI dos Correios, usando de tecnicalidades para limitá-las e obstruindo a convocação de líderes petistas, como o atual deputado José Dirceu ou o ex-presidente do PT José Genoino. Foi de Genoino, por sinal, em depoimento na Corregedoria da Câmara, a confirmação de que havia realmente uma sala no 4 andar do Palácio do Planalto, ao lado do Gabinete Civil, em que o então secretário-geral do PT, Sílvio Pereira, recebia políticos aliados para negociar cargos no governo, confirmando denúncias de Jefferson. Na mesma corregedoria, sem saber que Genoino confirmara, Dirceu negou que ocorressem tais reuniões e ainda acrescentou que isso seria "um escândalo".

A confirmação de reuniões no Planalto de dirigentes petistas com políticos aproxima cada vez mais o escândalo do gabinete presidencial, e o presidente vai ter que se empenhar bem mais para convencer a opinião pública sobre a separação do PT de seu governo. Para se entender o governo Lula, é preciso primeiro entender a estrutura organizacional do PT e a cabeça de seus dirigentes. O governo ainda se organiza baseado nessa estrutura e na lógica dos principais dirigentes petistas, a maioria formada por sindicalistas. Por isso o número tão grande de ministérios e secretarias, para poder abrigar tantas tendências.

O grupo Articulação, cujo principal líder sempre foi Lula, está no poder, como esteve sempre no poder na história do Partido dos Trabalhadores, salvo um pequeno período em que todos os demais grupos se uniram e tomaram o comando partidário. De volta ao poder, o grupo pôs em prática o rolo compressor, acionado pelo mesmo operador, o ex- chefe da Casa Civil José Dirceu.

A mudança de rumo da candidatura a presidente de Lula, com a aliança com o Partido Liberal, foi decidida pelo pequeno grupo que, vitoriosa a campanha, cercava o presidente no Palácio do Planalto — o chamado núcleo duro, hoje restrito ao ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e ao secretário-geral da Presidência Luiz Dulci — e que representava o comando da Articulação.

Raciocinando em termos partidários e fechados, dentro de uma lógica toda própria, os petistas tomaram conta da máquina governamental, dividindo entre suas correntes e tendências os diversos órgãos estatais. Aos partidos aliados couberam as sobras dessa divisão do "butim" e, pelo que se sabe agora, financiamentos pelo caixa dois. O que mais eles reclamavam era da "petização" do governo.

Seria impensável, dado o histórico do PT, que apenas um homem como Delúbio Soares fosse responsável pelo esquema de financiamento de campanhas, sem que o centralizador Dirceu não determinasse quem deveria receber dinheiro ou cargos nas estatais.

Quem escolheu Genoino para substituir Dirceu na presidência do PT foi o presidente Lula e seu pequeno grupo de assessores em uma reunião na Granja do Torto, decisão depois ratificada pela executiva nacional do partido. Lula só tirou o broche do PT da lapela do terno presidencial depois de muitas críticas. A estrela vermelha do PT foi plantada nos jardins de Burle Marx no Palácio do Alvorada para anunciar quem havia chegado ao poder. E o operador José Dirceu poderá repetir na CPI o que sempre diz: nunca fez nada sem que Lula soubesse.


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