Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 24, 2005

Miriam Leitão :Seguro democrático

O Globo

A sensação exata que os brasileiros ficam após mais uma semana de fatos revoltantes é de que a corrupção se espalhou e que o país é refém de um sistema que nos transformou numa republiqueta qualquer. Não contesto sentimentos. Esse é, sim, um momento de profunda dor cívica. Mas republiqueta não somos. Imagine se o governo, encurralado, tentasse uma saída chavista. Que chance teria?
A comparação é altamente favorável ao Brasil. Hugo Chávez é um fenômeno possível apenas em um país com instituições em frangalhos. Chávez é um aventureiro que tentou tomar o poder pelos tanques. Fracassado, inventou um partido personalista e se elegeu manipulando a mística nacional de Bolivar. Foi favorecido pelo desgaste dos partidos tradicionais que, por décadas, afastaram-se do povo venezuelano, montando uma alternância de poder que lembrava a nossa República Velha. Eleito, dissolveu o Congresso, fez novas eleições, mudou a Constituição, alterou a Suprema Corte, aprovou uma lei que amordaça a imprensa, capturou os cofres da empresa petrolífera para financiar sua política populista e agora investe sobre o Banco Central atrás das reservas cambiais.


O sonho chavista rondou certas mentes do governo Lula. Os sinais se tornam agora até mais evidentes. O plano era: ocupar todos os postos-chaves da administração pública; montar uma estrutura de financiamento político de recursos abundantes, através de um caixa dois irrigado pelo dinheiro da venda de favores, facilidades e contratos do setor público; e, por fim, manietar a imprensa. Depois, com a ajuda do que eles chamam de "movimentos populares" — e que Chávez chama de Brigadas Bolivarianas — pensariam em passos mais ousados.

A primeira diferença: o plano não era de todo o PT, mas de uma parte dele. Não são os novos filiados as más companhias do Partido dos Trabalhadores, como imagina o ex-ministro Olívio Dutra. Os maiores corruptores têm carteirinha de fundadores do partido, contudo há, entre os históricos petistas, políticos dos quais se orgulhar. A limpeza do PT terá de ir bem mais longe do que rejeitar os recém-chegados e cassar ganhadores de Land Rover. O trabalho de separação de joio e trigo terá que ser feito pelos próprios petistas, ou então se afundam todos. O petismo está com uma faca contra o peito: ou corta as partes podres, ou morre.

A tentativa de encurralar a imprensa não funcionou. Aquele foi o ápice da arrogância do grupo palaciano. Ele arquitetou duas leis, duas instituições satélites, que seriam usadas para, no dia-a-dia, minar as possibilidades de uma imprensa livre: a Ancinav e o Conselho Federal de Jornalismo. Estava e estou convencida de que, se aquele golpe desse certo, a democracia brasileira teria corrido um risco imenso. O país reagiu instantaneamente e com vigor à tentativa. Os amantes do modelo Chávez foram avisados, naquela ocasião, de que no Brasil eles não passariam. Outra diferença entre os dois países é que aqui a imprensa faz jornalismo, com apuração e opinião, livre e diferenciada. Lá a imprensa foi do panfletarismo contra o governo até a tentativa de golpe de Estado.

Os partidos brasileiros não são, nem de longe, as instituições dos nossos sonhos. Suspeitamos de que em todos há bandas podres. A falta de fidelidade dos políticos aos partidos produziu uma extravagância: 261 troca-trocas numa única legislatura. Vi em Caracas uma comemoração patética do Copei. Meia dúzia de gatos pingados, numa praça, tentando comemorar o aniversário do partido que por mais tempo esteve no poder no país. Cercados e ameaçados pelas Brigadas Bolivarianas, eles abreviaram o discurso e se dispersaram.

Esta não é uma coluna escrita para consolar e propor que nos conformemos com o que temos. Mas para constatar o que já conseguimos. O momento é de um desmonte que tolda a vista. Temos a impressão de que nada construímos. Não é verdade. Aqui, um presidente, encurralado por seus erros, cego por sua alienação, incensado por áulicos que dissessem que há uma conspiração da direita em marcha e que é preciso chamar os movimentos populares, não teria sucesso. Quem se atrever a tentar a saída chavista será deposto. Não há grupo com força suficiente para dissolver o Congresso, mudar a composição do Supremo, reescrever a Constituição e amarrar a imprensa. A nossa democracia tem inúmeros defeitos e está passando por um duro teste. Mas é forte. O maior risco que ela corre é a descrença que pode nascer, sobretudo, no coração dos jovens. Quem viu o que vimos não fraquejará. Mas e os jovens? É a pergunta que me inquieta desde o primeiro momento desta crise. Parte da resposta terá, inevitavelmente, que ser dada pelo próprio PT. Ele tem que voltar aos fundamentos e resgatar a parte boa da esperança que vendeu aos jovens. Que, ao renascer, abandone o farisaísmo, aquele defeito de se achar o único puro, apontando todos os outros como pecadores.

O país precisa aperfeiçoar o sistema político e as instituições públicas a cada novo golpe. Esse é o rumo; sempre. A reforma política que está no Congresso nada resolve e retrocede em vários pontos. Os mais sensatos entre os cientistas políticos estão propondo mudanças graduais. As revoluções são bruscas. A construção da democracia leva a vida inteira. Vive de permanências e aperfeiçoamentos constantes. Depois que essa tempestade passar, reiniciaremos a construção do Brasil que merecemos ter.

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