Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 24, 2005

JOÃO UBALDO RIBEIRO :O que é isso, companheiro?

O Globo

Abordando o que vou abordar, corro o risco de desinteressar os leitores. Culpa minha, claro, pois estarei tocando num assunto velho. Já é comum escreverem-se ensaios polissilábicos sobre como a massa de informação que nos bombardeia sobrecarrega a mente e nem temos tempo de pensar direito. E a tecnologia, cada vez mais célere, torna tudo obsoleto de um dia para o outro. Consumimos novidades, não queremos senão novidades, tudo envelhece em poucos dias, às vezes horas. O massacre de ontem hoje não mais interessa e a corrupção denunciada hoje cansa, se repisada amanhã. Tudo, até a notícia, virou uma espécie de mercadoria e o consumidor quer o último lançamento.

Acrescente-se a isso a revelação vertiginosa de falcatruas e crimes. É um caleidoscópio enlouquecido, um carrossel desgovernado, uma lanterna mágica de trambiques, mentiras e armações sórdidas, apresentada em compasso tão desenfreado que não se pode acompanhá-lo. Puxa-se um fio e a meada, em lugar de diminuir, aumenta e leva a outra e esta ainda a outra, numa rede diabólica de manobras delinqüentes, trazendo a sensação de que o país é conduzido por gangues ou famílias mafiosas. O espírito do homem de bem acaba por chegar a seus limites, o que se expressa em dezenas de formas, até mesmo evitando esses assuntos, por uma questão de sobrevivência psicológica e emocional, pois, afinal, para muitos, já soçobraram os valores, as crenças e os padrões incorporados à sua formação, o que pode tornar a vida insuportável.

Tenho ciência desse problema, mas não vou deixar de fazer meu registro de algo que não gosto de dizer, mas que alguém tem que dizer, porque estou seguro de que muita gente pensa da mesma maneira. Não gosto de dizer o que vou dizer porque queria acreditar no contrário, achar fatos ou indícios que me desmentissem convicções que a cada dia mais se solidificam na minha cabeça e na de inúmeros concidadãos. Mas não encontro fato ou indício algum e, assim, entendo que cabe afirmar que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva desrespeita e subestima os governados, despreza-lhes a inteligência, julga-os cegos diante dos acontecimentos e surdos-mudos depois deles.

Infenso ao contato com a imprensa, a não ser para monologar, escolheu um método singular para dirigir-se ao país, em sua visita à França. Com ar despreocupado, até fagueiro, que, em lugar da imagem de tranqüilidade que talvez quisesse projetar, dava a impressão de deboche quanto aos que vêem gravidade em nossa situação política, disse, com um cinismo que me assustou, pois era a última cara em que esperava vê-lo estampado, que era aquilo mesmo, que o PT tinha feito apenas o que é feito "sistematicamente", no Brasil. Portanto, conclui-se, não há razão para espanto ou desilusão.

Mas há razão para espanto e desilusão. Ficam agora dizendo por aí que não se suporta mais um presidente operário e se quer depor um presidente operário. Em primeiro lugar, não estou apoiando e muitíssimo menos propondo, sua deposição, até mesmo por vias legais. Em segundo lugar, votei no presidente operário, votou a esmagadora maioria do povo brasileiro e o que eu queria era ter orgulho de dizer isso, era encher o peito como cheguei a encher nos primeiros tempos. Não fizemos uma revolução, optamos pela mudança por vias democráticas, levamos ao poder um operário, um herói de origem humilde, um lutador, um desbravador, um que se proclamou ser aquele que mudará.

E de fato mudou. Quer dizer, mudou ele. Hoje temos a nos presidir um assassino de sonhos e esperanças, um que diz, com o semblante jovial, que o partido que vinha para mudar já começou por não mudar coisa nenhuma, ou melhor, ao que tudo indica, aperfeiçoou os mecanismos do embuste e da ladroagem, a partir da própria campanha. É isso mesmo, que queríamos, que o PT efetivamente representasse mudança, que ingenuidade é essa, que otários somos? Portanto, o presidente devia saber do que se passava, certamente não em detalhes, mas em linhas gerais. É assim que se faz, quem não sabe disso?

Numa entrevista que dei, referi-me a ele como ignorante. Confirmo. Mas a entrevista, por questão de espaço, precisou ser editada e, no muito que se teve de excluir, deixei claro que, quando disse "ignorante", o fiz apenas para ilustrar uma afirmativa e utilizo a palavra no sentido de formalmente inculto. Pois ignorante, infinitamente ignorante em relação a ele, sou eu, naquilo que ele — que, além de tudo, é muito inteligente, apesar da preguiça intelectual ou geral — domina magistralmente, o tornou artífice principal de uma obra política sem precedentes e o conduziu à posição em que está e que agora o revela como na inquietantemente profética frase do Barão de Itararé: "Queres conhecer o Inácio, coloca-o num palácio."

O candidato da mudança, do partido diferente dos demais, é o presidente de um país onde seu partido não muda nada, antes conserva com afinco e esmero. O companheiro, afinal, não passa de mais uma Vossa Excelência, das quais, aliás, já vimos melhores. Não tenho provas e por isto mesmo não acuso. Apenas digo que, na minha opinião, que só retiro se um juiz ordenar, Vossa Excelência sabia da bandidagem de seus auxiliares e, vai ver, tacitamente a aceitava, ou seja, calava e, pois, consentia. E digo, interprete Vossa Excelência como lhe for servido, que corrupto não é só quem frauda diretamente ou põe dinheiro no bolso: é também quem vê e ou finge que não vê, ou não liga e não faz nada, sabendo que é seu dever fazer algo. Sobretudo em casos assim, a conivência ou negligência faz alarmante fronteira com a cumplicidade. Se o raciocínio é correto, Vossa Excelência está próximo da suspeita de corrupção. Por favor desculpe a franqueza, mas acredito, embora não tenha certeza, que Vossa Excelência ainda prefere a sinceridade à bajulação e à hipocrisia.

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